O Dia em que o Meu Pai Bateu à Porta com as Malas na Mão
— Mariana, abre a porta! — ouvi a voz do meu marido, Rui, vinda do corredor, carregada de urgência e incredulidade.
Desci as escadas a correr, ainda com o avental sujo de molho de tomate, e deparei-me com uma cena que nunca pensei viver: o meu pai, António, parado à porta da nossa casa em Almada, encharcado pela chuva, com duas malas enormes e um saco de plástico do Pingo Doce. O cheiro a terra molhada misturava-se ao perfume antigo dele, aquele aroma familiar que eu tentava esquecer há anos.
— Pai? O que estás aqui a fazer? — perguntei, a voz presa na garganta.
Ele olhou-me com olhos cansados, mas determinados. — Preciso de ficar aqui uns tempos. Vendi a casa.
O Rui ficou imóvel, sem saber se devia convidá-lo a entrar ou fechar-lhe a porta na cara. Os miúdos, a Matilde e o Tomás, espreitavam atrás das minhas pernas, assustados com o tom tenso da conversa.
— Vendeste a casa? Mas… sem me dizeres nada? — Senti o sangue ferver-me nas veias. Não falávamos há quase dois anos, desde aquela discussão horrível no Natal em casa da minha irmã. Ele nunca aceitou o Rui, nunca aceitou as minhas escolhas. E agora aparecia assim?
— Não tinha para onde ir, Mariana. — A voz dele tremeu pela primeira vez. — Preciso de ti.
O Rui suspirou fundo e afastou-se para deixar passar o meu pai. Eu hesitei. Lembrei-me de todas as vezes que ele me fez sentir pequena, das palavras duras, dos silêncios gelados. Mas também me lembrei da infância: das idas à praia da Costa da Caparica, dos gelados ao fim da tarde, das histórias antes de dormir.
— Entra — disse finalmente, sentindo um nó no estômago.
O jantar ficou esquecido na mesa. Sentámo-nos todos na sala, num silêncio desconfortável. O meu pai olhava em volta como se estivesse num museu de memórias que não lhe pertenciam. A Matilde foi a primeira a quebrar o gelo:
— Avô, vais ficar connosco?
Ele sorriu-lhe tristemente. — Só por uns tempos, querida.
O Rui levantou-se e foi buscar uma manta para ele se secar. Eu fiquei ali sentada, sem saber o que dizer ou sentir. Porquê agora? Porquê assim?
Naquela noite não dormi. Fiquei a ouvir os passos dele no corredor, o ranger do soalho antigo do nosso T3. Lembrei-me da última vez que estivemos juntos: ele gritava comigo por ter escolhido o Rui em vez de seguir o curso de Direito que ele queria; eu gritava de volta que já não era uma criança. Depois disso, silêncio.
De manhã, encontrei-o na cozinha a fazer café como se nada fosse. O Rui entrou e cruzaram olhares tensos.
— António, precisamos de conversar — disse o Rui.
O meu pai assentiu e sentou-se à mesa. Eu sentei-me também, sentindo-me uma criança outra vez.
— Porque é que vendeste a casa? — perguntei.
Ele olhou para as mãos calejadas. — A mãe morreu há três meses. Não consegui ficar lá sozinho. E… perdi o emprego no mês passado. Não tinha dinheiro para manter aquilo tudo.
Senti um aperto no peito. A minha mãe tinha morrido e ele nem me avisou. Senti raiva e tristeza ao mesmo tempo.
— Porque não disseste nada? — perguntei quase num sussurro.
— Orgulho — respondeu ele simplesmente. — Sempre fui teimoso demais para pedir ajuda.
O Rui respirou fundo. — Podes ficar aqui uns dias, António. Mas precisamos de regras. As crianças têm rotinas e… bem, temos as nossas vidas.
O meu pai assentiu em silêncio.
Os dias seguintes foram estranhos. O meu pai tentava ajudar: lavava a loiça, arrumava os brinquedos dos miúdos, até cozinhou um arroz de polvo como nos velhos tempos. Mas havia sempre tensão no ar. O Rui evitava estar sozinho com ele; eu sentia-me dividida entre os dois homens mais importantes da minha vida.
Uma noite ouvi-os discutir baixinho na sala:
— Não penses que podes chegar aqui e mandar como antigamente — dizia o Rui.
— Só quero ajudar — respondeu o meu pai.
— A Mariana sofreu muito por tua causa. Não te esqueças disso.
Fiquei à porta a ouvir, sem coragem para entrar.
No dia seguinte, o meu pai tentou falar comigo:
— Mariana… desculpa tudo o que te disse naquele Natal. Eu estava magoado porque sentia que te estava a perder.
Olhei para ele e vi um homem envelhecido pela dor e pelo arrependimento.
— Também errei — admiti. — Mas custa-me aceitar tudo isto assim… de repente.
Ele pegou-me na mão como quando eu era pequena:
— Só quero uma segunda oportunidade para ser teu pai.
Chorei baixinho enquanto ele me abraçava pela primeira vez em anos.
As semanas passaram e fomos encontrando um novo equilíbrio. O meu pai começou a procurar trabalho; ajudava os miúdos com os trabalhos de casa; até começou a conversar mais com o Rui sobre futebol e política. Mas havia dias em que tudo parecia prestes a desmoronar: discussões sobre dinheiro, sobre espaço, sobre passado não resolvido.
Uma tarde recebi uma chamada da minha irmã mais nova, Sofia:
— O pai está aí? Ele não me atende há semanas!
Expliquei-lhe tudo entre lágrimas e raiva contida. Ela ficou furiosa por não ter sido avisada; acusou-me de querer ficar com tudo para mim; disse que eu sempre fui a preferida dele. Mais uma ferida aberta na família.
No Natal seguinte tentámos juntar todos à mesa outra vez. A tensão era palpável: Sofia mal olhava para mim; o meu pai tentava animar os netos; o Rui mantinha-se ocupado na cozinha para evitar discussões.
No fim do jantar, o meu pai levantou-se e fez um brinde:
— Sei que errei muito convosco. Mas agradeço-vos por me deixarem tentar ser melhor agora.
Houve lágrimas e abraços tímidos. Não resolvemos tudo naquela noite, mas demos um passo em frente.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem presas ao orgulho e ao silêncio? Quantas oportunidades perdemos por medo de pedir ajuda ou perdoar?
Será possível reconstruir uma família quando tudo parece perdido? E vocês… já passaram por algo assim?