O Meu Irmão Pediu para Ficar Cá em Casa: Uma História de Traição, Família e Limites
— Não acredito que estás mesmo a pedir-me isto, Rui. — As palavras saíram-me num sussurro, mas carregadas de uma raiva antiga, quase esquecida. O Rui olhou para mim, os olhos castanhos — tão parecidos com os meus — cheios de uma súplica que me desarmava e irritava ao mesmo tempo. Ao lado dele, a Ana, a mulher dele, mantinha-se calada, as mãos entrelaçadas no colo, como se quisesse desaparecer.
A sala parecia mais pequena do que nunca. O cheiro do café frio misturava-se com o perfume doce da Ana e com o suor nervoso do Rui. Era uma tarde de domingo, mas o tempo tinha parado ali, entre as quatro paredes do meu T2 em Almada.
— Eu sei que não tenho direito de te pedir nada — disse o Rui, finalmente. — Mas estamos mesmo aflitos. O senhorio aumentou-nos a renda outra vez e eu perdi o trabalho no mês passado. Não temos para onde ir.
Fechei os olhos por um instante. A imagem do Rui, há sete anos atrás, voltou-me à cabeça como uma bofetada: ele a sair porta fora, depois daquela discussão brutal por causa do nosso pai. Ele a dizer-me que eu era egoísta, que só pensava em mim. E depois… depois aquela traição.
Nunca contei a ninguém o que ele fez. Nem à mãe, nem aos amigos. Guardei tudo cá dentro, como se fosse um segredo sujo que me pertencia só a mim. O Rui roubou-me dinheiro. Não muito — mas era tudo o que eu tinha na altura. E não foi só isso: contou mentiras sobre mim à família para se safar de uma asneira qualquer. Eu fiquei com a fama, ele com a liberdade.
Agora estava ali, sentado no meu sofá, a pedir-me abrigo.
— E porque é que não vais para casa da mãe? — perguntei, tentando manter a voz firme.
O Rui baixou os olhos.
— Ela não pode… Sabes como está doente. E o apartamento é pequeno demais para nós os dois…
A Ana olhou-me então pela primeira vez.
— Por favor, Sofia. Só precisamos de umas semanas até arranjarmos alguma coisa…
O silêncio caiu pesado entre nós. Senti o coração apertado, como se estivesse a trair-me a mim própria só por considerar ajudá-los. Mas também me lembrei dos tempos em que éramos crianças e partilhávamos tudo: os brinquedos, os segredos, até as lágrimas quando o pai nos deixava sozinhos em casa porque tinha de ir trabalhar à noite.
Levantei-me e fui até à janela. Lá fora, o Tejo brilhava ao longe e ouviam-se as buzinas dos carros na ponte 25 de Abril. Tantas vezes desejei fugir dali, começar de novo noutro sítio qualquer onde ninguém soubesse quem eu era ou o que tinha acontecido entre mim e o Rui.
— Sofia… — ouvi-o chamar atrás de mim. — Eu mudei. Juro que mudei. A Ana pode dizer-te…
Ela assentiu com um sorriso tímido.
— Ele tem feito tudo para ser melhor pessoa…
Ri-me, amarga.
— Sabes quantas vezes ouvi isso? Que as pessoas mudam? — virei-me para eles. — E quantas vezes é verdade?
O Rui levantou-se também.
— Eu sei que te magoei. Sei que não mereço o teu perdão. Mas és a minha irmã…
A palavra ficou a pairar no ar como uma promessa quebrada.
Lembrei-me da última vez que estivemos todos juntos: o Natal antes da morte do pai. A mãe a tentar juntar-nos à mesa, o Rui já distante, eu cansada de tentar manter a família unida sozinha. Depois disso, tudo se desfez.
— Se te deixar ficar aqui… — comecei devagar — …quais são as garantias de que não vais voltar a fazer o mesmo?
O Rui olhou-me nos olhos, sem desviar o olhar.
— Não há garantias. Só posso prometer que vou tentar não te desiludir outra vez.
A sinceridade dele magoou-me mais do que qualquer mentira.
Acabei por ceder. Não sei bem porquê — talvez por fraqueza, talvez por esperança de que ainda houvesse salvação para nós dois.
— Podem ficar duas semanas. Não mais. E há regras: nada de trazer amigos cá para casa, nada de mexer nas minhas coisas sem pedir… E cada um trata das suas refeições.
A Ana sorriu e agradeceu baixinho. O Rui abraçou-me com força e senti-o tremer.
Os primeiros dias foram estranhos. O Rui tentava ser útil: lavava a loiça, arrumava a sala, até me comprou flores num sábado de manhã. A Ana procurava trabalho online e fazia bolos para nos animar. Mas havia sempre um silêncio desconfortável entre nós — como se todos estivéssemos à espera do próximo desastre.
Uma noite ouvi-os discutir no quarto de hóspedes:
— Disseste que ela ia perdoar-te! — sussurrava a Ana, zangada.
— Eu não disse isso! Disse que ia tentar…
— E se ela nos põe na rua?
— Arranjamos outra solução…
Fingi não ouvir e fui dormir com um nó no estômago.
No fim da primeira semana começaram os problemas: desapareceu dinheiro da minha carteira. Pouco — vinte euros — mas foi suficiente para me deixar alerta. Confrontei o Rui na cozinha:
— Faltam vinte euros da minha carteira. Sabes alguma coisa?
Ele ficou vermelho e negou imediatamente.
— Juro que não fui eu! Pergunta à Ana!
Ela abanou a cabeça, assustada.
— Não mexemos nas tuas coisas, Sofia…
Não insisti mais naquela noite, mas dormi mal. No dia seguinte encontrei os vinte euros caídos atrás do sofá enquanto aspirava — senti-me culpada por ter desconfiado deles tão depressa.
Mas a tensão não desapareceu. O Rui começou a chegar tarde a casa; dizia que andava à procura de trabalho mas vinha sempre cansado e cheirando a cerveja barata dos bares da zona velha de Almada. A Ana chorava baixinho no quarto quando pensava que eu não ouvia.
Uma noite ela bateu à minha porta:
— Sofia… posso falar contigo?
Sentei-me com ela na sala escura.
— O Rui está pior outra vez… Anda nervoso, bebe demais… Eu já não sei o que fazer…
Olhei para ela e vi nos olhos dela o mesmo medo que tantas vezes vi nos olhos da minha mãe quando era pequena: medo de perder tudo, medo de não ser suficiente para segurar quem amamos.
— Tens família? — perguntei-lhe baixinho.
Ela abanou a cabeça.
— Só ele…
Ficámos ali sentadas em silêncio até ela adormecer encostada ao meu ombro.
No dia seguinte decidi confrontar o Rui:
— Isto não pode continuar assim! Disseste que tinhas mudado mas continuas igual! Não posso viver nesta ansiedade constante!
Ele explodiu:
— Achas que é fácil? Achas que eu quero ser assim? Tu sempre tiveste tudo controlado! Sempre foste a filha perfeita!
As palavras dele cortaram fundo porque eram verdadeiras e injustas ao mesmo tempo.
— Não sou perfeita! Só tentei sobreviver ao caos que tu criaste!
Ele chorou pela primeira vez desde criança. Chorou como quem já não tem forças para mentir nem para lutar contra si próprio.
Na manhã seguinte deixou-me um bilhete na mesa:
“Desculpa por tudo. Vamos sair hoje mesmo. Obrigado por tentares ajudar-me mesmo quando eu não merecia. Cuida-te.”
Quando voltei do trabalho já tinham ido embora. O quarto estava vazio; só restava um cheiro vago a perfume da Ana e uma fotografia antiga nossa caída no chão: eu e o Rui pequenos na praia da Costa da Caparica, rindo sem saber ainda o peso das escolhas dos adultos.
Sentei-me na cama deles e chorei tudo o que tinha guardado durante anos: raiva, tristeza, saudade e uma culpa estranha por nunca conseguir ser suficiente para salvar ninguém além de mim própria.
Agora olho para trás e pergunto-me: será possível perdoar verdadeiramente quem nos magoa repetidamente? Ou há feridas na família que nunca chegam realmente a sarar? E vocês — até onde iriam por um irmão?