O Diário Escondido na Cave: O Meu Casamento em Ruínas

— Não mexas aí, Ana! — gritou o Miguel do topo das escadas, mas já era tarde. Eu tinha acabado de abrir a velha arca de madeira na cave, à procura das decorações de Natal. O cheiro a mofo misturava-se com o frio húmido daquele espaço esquecido. Entre caixas de recordações e livros antigos, encontrei um caderno de capa preta, com as iniciais dele gravadas a ouro: M.C.S.

O meu coração acelerou. Não era só curiosidade; era uma inquietação antiga, um pressentimento que sempre me acompanhou desde que casei com o Miguel. Sentei-me no chão gelado, ignorando as teias de aranha e a poeira. Abri o diário na primeira página. “Lisboa, 2002. Se alguém algum dia ler isto, peço desculpa.”

As mãos tremiam-me. Continuei a ler. As palavras dele eram cruas, honestas, diferentes do homem calmo e reservado que conhecia há mais de vinte anos. Falava de uma paixão antiga, da Teresa — um nome que nunca tinha ouvido antes — e de noites passadas em segredo, muito antes de me conhecer. Mas à medida que avançava nas páginas, percebi que aquela história não tinha ficado no passado.

“Hoje voltei a ver a Teresa. Ela pediu-me para não contar nada à Ana. Sinto-me dividido.”

O chão pareceu fugir-me dos pés. Teresa? Quem era esta mulher? E porquê esconder-me isto? Fechei o diário com força, mas as palavras já estavam gravadas na minha mente. Subi as escadas devagar, sentindo o peso do segredo a esmagar-me o peito.

Miguel estava na cozinha, a preparar café como se nada fosse. Olhou para mim e percebeu logo que algo não estava bem.

— O que foi?

— Quem é a Teresa? — perguntei, sem rodeios.

Ele ficou pálido. O silêncio entre nós tornou-se insuportável.

— Ana… não devias ter lido aquilo.

— Não devia? Então preferias continuar a mentir-me? — A minha voz saiu mais alta do que queria.

Ele pousou a chávena com as mãos a tremer.

— Não é o que pensas…

— Então explica-me! — gritei.

O Miguel sentou-se à mesa, com os olhos fixos no tampo de madeira. Demorou alguns segundos até falar.

— A Teresa foi… alguém importante para mim. Antes de ti. Mas ela voltou à minha vida há uns anos, quando o pai dela morreu. Precisava de ajuda… e eu não consegui dizer-te nada porque sabia que ias interpretar mal.

— E achas que agora interpreto melhor? — As lágrimas começaram a correr-me pelo rosto.

Ele tentou tocar-me na mão, mas afastei-me.

— Nunca te traí, Ana. Juro-te. Mas menti-te. E isso foi errado.

Fugi para o quarto e fechei a porta à chave. Ouvia-o do outro lado, a pedir desculpa, mas não conseguia ouvir mais nada naquele momento. Sentei-me na cama e voltei a abrir o diário. Precisava de saber tudo.

As páginas seguintes eram ainda mais dolorosas. Falava dos nossos primeiros anos juntos, das dúvidas dele em relação ao casamento, das discussões sobre ter filhos — ele nunca quis realmente ser pai, mas cedeu por minha causa. Senti-me traída duas vezes: pela Teresa e pela mentira sobre os nossos sonhos partilhados.

No dia seguinte, acordei cedo e fui até à casa da minha mãe em Almada. Precisava de espaço para pensar. Ela percebeu logo que algo se passava.

— O Miguel fez-te alguma coisa?

— Descobri que ele me escondeu uma parte importante da vida dele… e talvez nunca tenha querido esta família como eu quis.

A minha mãe suspirou e puxou-me para junto dela no sofá.

— Os homens têm medo de mostrar fraqueza, filha. Mas tu tens direito à verdade.

Passei o dia inteiro a pensar no que fazer. O Miguel ligou dezenas de vezes; não atendi nenhuma chamada. À noite, enviei-lhe uma mensagem: “Preciso de tempo.” Ele respondeu: “Amo-te. Estou aqui quando quiseres falar.” Mas eu já não sabia se queria ouvir mais nada.

Durante semanas vivi num limbo entre raiva e tristeza. Os meus filhos perceberam logo que algo estava errado em casa; a Leonor começou a fazer perguntas difíceis:

— Mãe, tu e o pai vão separar-se?

Não consegui responder-lhe. Só lhe disse que às vezes os adultos também se magoam uns aos outros sem querer.

A pressão da família aumentava — sogra a ligar todos os dias, irmãos preocupados com os miúdos, amigos comuns a tentar perceber o que se passava sem fazer perguntas diretas. Senti-me sozinha como nunca antes.

Um dia, decidi confrontar a Teresa. Descobri onde ela trabalhava — numa escola primária em Setúbal — e fui lá sem avisar ninguém. Quando me apresentei na portaria como “a mulher do Miguel”, vi nos olhos dela um misto de surpresa e culpa.

— Ana… eu não queria causar problemas — disse ela assim que ficámos sozinhas na sala dos professores.

— Então porque é que voltaste à vida dele?

Ela baixou os olhos.

— Porque precisava de um amigo… só isso. O Miguel sempre foi importante para mim, mas nunca quis destruir o vosso casamento.

Olhei-a nos olhos e percebi que dizia a verdade — pelo menos em parte. Mas isso não apagava as mentiras do Miguel nem as dúvidas que agora me corroíam por dentro.

Voltei para casa mais confusa do que nunca. O Miguel estava sentado no sofá com uma fotografia nossa nas mãos — aquela do nosso casamento em Sintra, onde parecíamos tão felizes e ingénuos.

— Ana… não quero perder-te — disse ele com lágrimas nos olhos.

Sentei-me ao lado dele, mas mantive distância.

— Eu também não queria perder isto… mas já não sei se consigo confiar em ti outra vez.

Ele chorou como nunca o tinha visto chorar antes. Pela primeira vez em vinte anos vi-o despido de todas as defesas, vulnerável como uma criança perdida.

Os dias seguintes foram feitos de silêncios pesados e conversas interrompidas. Fomos juntos a uma terapeuta de casal em Lisboa; tentámos reconstruir alguma coisa entre nós, mas cada palavra parecia um remendo mal cosido numa ferida aberta.

A certa altura percebi que talvez nunca voltasse a confiar plenamente nele — ou em mim própria para distinguir verdade de mentira. Mas também percebi que ninguém é só luz ou só sombra; todos temos segredos guardados nas caves da alma.

Hoje escrevo estas palavras sem saber qual será o nosso futuro juntos. Talvez fiquemos ligados apenas pelos filhos e pelas memórias partilhadas; talvez consigamos reinventar-nos como casal depois da tempestade.

Mas pergunto-me: quantos casamentos sobrevivem às verdades escondidas? E será possível amar alguém depois de descobrir tudo aquilo que preferíamos nunca ter sabido?