A Sombra da Outra Mulher: A História de uma Confiança Quebrada

— Não me mintas, António! — gritei, a voz embargada, enquanto ele largava as chaves em cima da mesa da entrada. O relógio marcava quase meia-noite e o cheiro do seu perfume misturava-se com um aroma estranho, doce, que não era meu.

Ele parou, olhou-me nos olhos e suspirou fundo. — Maria, por favor, não comeces outra vez. Estou cansado.

Mas eu já não conseguia conter a avalanche de emoções. As palavras dos vizinhos ecoavam na minha cabeça desde aquela tarde: “Sabias que o António anda a trazer uma mulher cá a casa quando tu sais para trabalhar?” O chão fugiu-me dos pés nesse instante. Passei horas a olhar para as paredes da sala, tentando encontrar sinais, pistas, qualquer coisa que me dissesse que era tudo mentira.

— Cansado? E eu? Achas que não estou cansada de viver nesta dúvida? — As lágrimas começaram a cair, quentes e silenciosas. — Diz-me a verdade, António. Quem é ela?

Ele desviou o olhar, mexendo nervosamente no telemóvel. — Não há ninguém, Maria. Os vizinhos gostam de inventar histórias.

Mas eu já não acreditava. O silêncio dele era mais pesado do que qualquer resposta. Lembrei-me das noites em que ele chegava tarde, das mensagens apagadas no telemóvel, dos sorrisos forçados ao jantar. Tudo fazia sentido agora.

Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na cama, a olhar para o teto, a ouvir a respiração dele ao meu lado. O António sempre foi o meu porto seguro. Conhecemo-nos na faculdade, apaixonámo-nos entre livros e cafés baratos no Bairro Alto. Construímos uma vida juntos: comprámos esta casa pequena em Almada, criámos dois filhos maravilhosos, sobrevivemos à crise e às contas por pagar. E agora… agora sentia-me uma estranha na minha própria casa.

No dia seguinte, tentei agir normalmente. Preparei o pequeno-almoço para os miúdos — a Inês e o Tomás — e fingi um sorriso enquanto eles discutiam sobre quem ia levar o cão à rua. O António saiu cedo, disse que tinha uma reunião importante no escritório.

Assim que a porta se fechou, sentei-me à mesa da cozinha e chorei baixinho. Liguei à minha mãe.

— Mãe… — a voz saiu-me trémula.

— O que foi, filha? — Ela percebeu logo pelo tom.

— Acho que o António me está a trair.

Do outro lado ouvi um suspiro pesado. — Tens a certeza? Às vezes as pessoas falam demais…

— Não sei… Mas sinto-o distante há meses. E agora os vizinhos dizem que ele traz outra mulher cá a casa.

— Filha… — A minha mãe hesitou. — Tens de falar com ele. Mas lembra-te: às vezes perdoar é mais difícil do que partir.

Desliguei sem saber se queria ouvir aquilo. Passei o resto do dia num torpor, arrumando gavetas e tentando encontrar provas: um brinco esquecido, um cheiro diferente nos lençóis, qualquer coisa. Mas não encontrei nada além do vazio.

À noite, quando os miúdos já dormiam, sentei-me com o António na sala.

— Precisamos de conversar — disse eu, tentando manter a voz firme.

Ele olhou para mim com cansaço. — Sobre o quê?

— Sobre nós. Sobre esta distância. Sobre as coisas que andam a dizer.

Ele passou as mãos pelo rosto e ficou em silêncio durante longos segundos.

— Maria… Eu sei que tenho estado ausente. O trabalho tem sido um inferno…

— Não é só isso! — interrompi-o. — Sinto-te longe há meses! Já nem me olhas nos olhos…

Ele levantou-se abruptamente e começou a andar de um lado para o outro.

— Não há ninguém! — gritou finalmente. — Só estou cansado! Não posso ter um momento de paz nesta casa?

As palavras dele magoaram-me mais do que qualquer confissão. Senti-me pequena, ridícula por desconfiar do homem com quem partilhei metade da minha vida. Mas ao mesmo tempo… havia algo nele que já não reconhecia.

Nos dias seguintes tentei ignorar os olhares dos vizinhos no elevador, os sussurros no café da esquina. A Inês começou a perguntar porque é que eu chorava tanto à noite; o Tomás fechou-se ainda mais no quarto dele. A tensão era palpável em cada canto da casa.

Uma tarde, ao regressar mais cedo do trabalho, encontrei um lenço de mulher no sofá da sala. Não era meu. O coração disparou; as mãos tremiam enquanto o segurava.

Quando o António chegou a casa nessa noite, mostrei-lhe o lenço sem dizer uma palavra.

Ele ficou pálido.

— De quem é isto? — perguntei num fio de voz.

Ele hesitou antes de responder:

— É da Marta… uma colega do trabalho. Veio cá deixar uns papéis para mim…

— E porque é que ela deixou um lenço? — A minha voz saiu fria como gelo.

Ele não respondeu. Limitou-se a sentar-se no sofá e pôs as mãos na cabeça.

— Maria… Eu não queria magoar-te…

O mundo desabou à minha volta naquele instante. Senti-me traída não só por ele, mas também por mim mesma — por ter acreditado nas mentiras dele durante tanto tempo.

Os dias seguintes foram um nevoeiro de discussões baixas atrás das portas fechadas, silêncios pesados à mesa do jantar e olhares vazios entre nós dois. Os miúdos começaram a perceber; a Inês chorava à noite e pedia-me para não deixar o pai ir embora.

A minha mãe veio cá ajudar-me com as crianças. Uma noite sentámo-nos as duas na varanda enquanto ela fumava um cigarro e olhava para as luzes da cidade ao longe.

— Filha… às vezes é preciso coragem para partir — disse ela suavemente. — Mas também é preciso coragem para ficar e tentar perdoar.

Eu não sabia o que fazer. O António pediu desculpa mil vezes; jurou que tinha sido só uma vez; prometeu mudar tudo se eu lhe desse outra oportunidade. Mas como se volta a confiar depois de uma traição?

Passei noites em claro a pensar nos nossos anos juntos: nas férias em Vila Nova de Milfontes quando éramos jovens; nos natais passados em família; nas promessas feitas ao luar na praia da Costa da Caparica. Tudo parecia tão distante agora…

Uma tarde sentei-me com os miúdos no parque e tentei explicar-lhes o que estava a acontecer sem os magoar ainda mais.

— Às vezes as pessoas fazem coisas más umas às outras… mas isso não quer dizer que deixem de se amar — disse eu à Inês enquanto ela me agarrava a mão com força.

Ela olhou para mim com aqueles olhos grandes e tristes:

— Vais deixar o pai?

Não consegui responder-lhe.

Hoje estou aqui, sentada diante do espelho do nosso quarto vazio, a olhar para o reflexo de uma mulher cansada mas ainda assim cheia de perguntas sem resposta.

Será possível reconstruir aquilo que foi destruído? Ou será que perdoar é apenas uma forma de adiar o inevitável?

E vocês? Já sentiram esta dor? O que fariam no meu lugar?