Entre o Amor e o Medo: Quando o Meu Pai Não Acreditou em Mim

— Filipa, não te iludas. Não tens estofo para viver sozinha. Vais ver que não aguentas nem um mês.

As palavras do meu pai ecoaram na sala como um trovão inesperado. Eu tinha 29 anos, licenciada em Psicologia, com um contrato precário numa creche em Almada, e sentia-me presa entre o desejo de crescer e as raízes que me seguravam à casa dos meus pais, em Setúbal. Mas nunca pensei ouvir aquilo do homem que sempre admirei.

— Pai, porque é que dizes isso? Achas que sou assim tão incapaz?

Ele desviou o olhar, mexendo no jornal como se procurasse uma resposta entre as páginas. A minha mãe, sentada ao lado dele, mantinha-se calada, mas os olhos dela diziam tudo: medo, preocupação, talvez até vergonha por mim.

— Não é questão de seres incapaz, Filipa. É o mundo lá fora. Não tens noção das contas, das despesas, dos perigos. E depois… tu sempre foste tão distraída. Lembras-te quando perdeste as chaves da casa três vezes num mês?

Senti o rosto a arder. Não era só sobre as chaves. Era sobre todas as vezes que me esqueci de pagar a luz, ou deixei o arroz queimar no fogão. Era sobre as minhas crises de ansiedade, as noites em que chorava baixinho para não acordar ninguém.

— Eu já não sou uma criança — disse, tentando controlar a voz. — Preciso de tentar. Preciso de saber se consigo.

O silêncio caiu pesado. O meu irmão mais novo, o Tiago, entrou na sala com o telemóvel na mão e percebeu logo a tensão.

— O que se passa?

— A tua irmã acha que consegue viver sozinha — respondeu o meu pai, num tom quase trocista.

Tiago encolheu os ombros.

— Deixa-a tentar. Se correr mal, volta para casa. Qual é o problema?

O meu pai bufou e saiu da sala. A minha mãe aproximou-se de mim e pousou a mão no meu ombro.

— Filipa, ele só quer proteger-te. Sabes como ele é…

Mas eu já não ouvia nada. Só sentia um nó na garganta e uma vontade imensa de fugir dali.

Nessa noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto do meu quarto de infância, rodeada pelos peluches antigos e os livros da faculdade. Lembrei-me das vezes em que o meu pai me ensinou a andar de bicicleta no parque da cidade, das tardes em que me ajudou nos trabalhos de casa. Sempre foi protetor — talvez demasiado. Mas agora sentia-me sufocada.

No dia seguinte, procurei quartos para alugar na internet. Os preços eram absurdos para o meu salário miserável, mas encontrei um T0 minúsculo em Cacilhas. O senhorio era um homem idoso chamado Sr. António, simpático mas desconfiado.

— Tem referências? — perguntou ele.

— Só vivi com os meus pais até agora…

Ele olhou-me de cima a baixo.

— Olhe que isto não é fácil para ninguém. E as contas são à parte.

Assinei o contrato com as mãos a tremer. Quando contei aos meus pais, o meu pai nem olhou para mim.

— Vais arrepender-te — disse apenas.

A mudança foi um caos: caixas espalhadas pelo chão, sacos do Pingo Doce cheios de panelas velhas e roupa amarrotada. O Tiago ajudou-me a carregar tudo no carro dele.

— Vais ver que te safas — disse ele, piscando-me o olho.

Na primeira noite sozinha, sentei-me no colchão no chão e chorei baixinho. O frigorífico fazia um barulho estranho e havia uma mancha de humidade na parede. Senti-me pequena e ridícula.

Os dias seguintes foram uma sucessão de pequenas derrotas: esqueci-me de comprar papel higiénico, deixei cair um prato no chão, fiquei sem gás a meio do banho. No trabalho, os colegas olhavam para mim com pena quando lhes contei que tinha saído de casa dos pais.

— Corajosa — disse a Ana, uma educadora mais velha. — Mas olha que custa…

À noite ligava à minha mãe para saber como estavam as coisas em casa. Ela falava pouco; percebia-se que estava triste por me ver afastar assim. O meu pai nunca vinha ao telefone.

Um dia cheguei a casa e encontrei um bilhete na porta:

“Filipa, passei por aqui para ver se estavas bem. Não estavas. Liga-me quando puderes. Pai.”

O coração apertou-se-me no peito. Liguei-lhe nessa noite.

— Então? — perguntou ele, seco.

— Estou bem…

— Precisas de alguma coisa?

— Não… Obrigada por teres passado.

Silêncio do outro lado.

— Olha… Se precisares de ajuda com as contas ou assim…

— Eu desenrasco-me — respondi rápido demais.

Desligámos sem despedidas calorosas.

Os meses passaram devagar. Aprendi a fazer arroz sem queimar, a pagar as contas a tempo (quase sempre), a lidar com as saudades da família e com o medo das noites solitárias. Comecei a sair mais com colegas do trabalho; fui ao cinema sozinha pela primeira vez; até me inscrevi num curso de cerâmica ao sábado de manhã.

Mas havia dias em que tudo parecia demasiado difícil: quando ficava doente e não tinha quem me fizesse chá; quando via casais felizes no supermercado e sentia o peso da solidão; quando recebia cartas do banco e não percebia metade do que diziam.

No Natal desse ano voltei a casa dos meus pais. O cheiro do bacalhau com natas encheu-me de nostalgia e tristeza ao mesmo tempo. O meu pai estava diferente: mais calado, mais velho talvez.

Durante o jantar, ele olhou para mim e disse:

— Então? Ainda não voltaste para casa…

Sorri-lhe com ternura.

— Não… E sabes? Acho que estou a conseguir.

Ele não respondeu logo. Depois levantou-se e foi buscar uma caixa embrulhada em papel dourado.

— Toma — disse ele, empurrando-ma para as mãos.

Abri-a: era um conjunto de chaves novas com um porta-chaves em forma de coração.

— Para não perderes as tuas — murmurou ele, sem me olhar nos olhos.

Senti as lágrimas a subir-me aos olhos.

Naquela noite percebi que o amor do meu pai era feito de medo — medo de me perder, medo de eu sofrer como ele sofreu quando era novo e teve de sair de casa aos 16 anos para trabalhar nas obras em Lisboa. Percebi também que eu precisava daquele medo para crescer; precisava da dúvida dele para encontrar a minha força.

Hoje continuo a viver sozinha em Cacilhas. Ainda tenho dias maus; ainda sinto falta da minha família; ainda tenho medo do futuro. Mas sei que sou capaz — não porque nunca falho, mas porque aprendi a levantar-me sempre que caio.

Às vezes pergunto-me: quantos sonhos ficam por realizar só porque alguém nos diz que não somos capazes? E vocês? Já sentiram esse medo — ou essa dúvida — vinda de quem mais amam?