Servi a Minha Família Até Me Esquecer de Mim: O Dia em que Descobri que a Vida Era Muito Mais

— Mãe, não podes simplesmente aparecer na minha casa sem avisar! — gritou a Mariana, com a voz embargada de impaciência, enquanto eu ainda segurava o saco de maçãs que tinha trazido do mercado. O corredor do prédio cheirava a lixívia e a desilusão. Senti o peso do olhar dela, como se cada ruga no meu rosto fosse uma afronta à sua liberdade.

Por um instante, quis responder-lhe, dizer-lhe que só queria ver os netos, que sentia falta do barulho da casa cheia. Mas calei-me. Há anos que me calo. Desde que o António morreu, há sete anos, a minha vida ficou reduzida a visitas furtivas aos filhos e às tarefas domésticas que ninguém mais quer fazer. O silêncio tornou-se o meu único companheiro fiel.

Lembro-me de quando tudo começou. Eu era uma rapariga de Vila Real, cheia de sonhos pequenos — casar, ter filhos, cuidar da casa. Nunca me ensinaram a desejar mais do que isso. A minha mãe dizia: “Filha, mulher que é mulher cuida dos seus.” E eu cuidei. Cuidei tanto que me esqueci de mim.

O António era um homem bom, mas ausente. Trabalhava no café da vila e chegava tarde, cansado, com cheiro a tabaco e café queimado. Eu ficava com as crianças — o João, a Mariana e o Pedro — e fazia tudo para que nada lhes faltasse. Roupa lavada, comida na mesa, beijos de boa noite. Mas nunca ninguém perguntou se eu estava bem.

Os anos passaram depressa. O João foi o primeiro a sair de casa, para Lisboa. Lembro-me do dia em que fez as malas: “Mãe, preciso de viver a minha vida.” Chorei no quarto dele, abraçada ao casaco que deixou para trás. Depois foi a Mariana, sempre rebelde, sempre a querer mais do que esta terra lhe podia dar. O Pedro ficou mais tempo, mas também ele partiu para o Porto assim que arranjou trabalho.

Fiquei sozinha com o António. E quando ele morreu — um ataque fulminante enquanto limpava as mesas do café — senti-me como uma folha ao vento. Os filhos vinham visitar-me ao domingo, mas cada vez menos. As conversas eram curtas, apressadas. “Mãe, não te preocupes tanto.” “Mãe, tens de arranjar um passatempo.” Mas como se arranja um passatempo quando toda a vida foi servir os outros?

O tempo passou e fui ficando invisível. As vizinhas diziam: “A D. Rosa é uma santa.” Mas eu não queria ser santa. Queria ser vista.

Naquele dia em casa da Mariana, percebi finalmente que já não havia lugar para mim na vida dos meus filhos. Eles tinham crescido, tinham as suas rotinas, os seus problemas. Eu era um peso, uma lembrança incómoda do passado.

Voltei para casa devagarinho, as maçãs pesando na mão como pedras. Sentei-me à mesa da cozinha e olhei para as paredes amarelas, gastas pelo tempo e pela solidão. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim — raiva de mim própria por nunca ter ousado sonhar mais alto.

Naquela noite não dormi. Fui até à janela e olhei para as luzes da vila. Perguntei-me: “E agora? O que faço com o resto da minha vida?” Pela primeira vez em décadas, pensei em mim.

No dia seguinte fui ao centro de dia da vila. A assistente social olhou para mim com surpresa: “Dona Rosa? Nunca a vi por aqui!” Senti vergonha por estar ali, como se estivesse a trair a memória da minha mãe e do António. Mas sentei-me mesmo assim.

Conheci outras mulheres como eu — a D. Amélia, viúva há mais tempo ainda; a D. Teresa, que nunca teve filhos; a D. Lurdes, sempre a rir alto para esconder as lágrimas. Começámos a conversar sobre livros, sobre viagens que nunca fizemos, sobre sonhos adiados.

Um dia organizaram uma excursão ao Porto. Hesitei muito antes de ir — nunca tinha viajado sozinha — mas acabei por aceitar. Lembro-me de entrar no autocarro com as mãos a tremer e o coração aos saltos. Vi o mar pela primeira vez aos 48 anos.

Chorei quando pus os pés na areia fria da Foz. Chorei por tudo o que perdi e por tudo o que ainda podia viver.

Quando voltei à vila, os filhos estranharam o meu sorriso novo. O João ligou: “Mãe, estás bem?” E eu respondi: “Estou a aprender a estar.” A Mariana veio visitar-me e encontrou-me a pintar um quadro torto na varanda. “Nunca soube que gostavas de pintar.” E eu disse: “Nem eu sabia.” O Pedro trouxe-me um livro sobre viagens pelo mundo.

Comecei a escrever num caderno velho todas as coisas que queria fazer antes de morrer: aprender a nadar, ir ao teatro em Lisboa, dançar num arraial sem vergonha dos meus pés tortos.

A solidão ainda dói — dói muito — mas agora já não é só vazio; é também espaço para crescer.

Às vezes pergunto-me: será que fui egoísta por querer mais? Ou será que finalmente aprendi que também mereço viver?

E vocês? Quantas vidas cabem numa só mulher?