“Porque é que nunca sou suficiente?” – À sombra de um casamento desfeito
– Não me mintas, António! Eu vi as mensagens. Vi tudo! – gritei, com a voz embargada, as mãos a tremerem tanto que mal conseguia segurar o telemóvel.
Ele ficou parado à porta da cozinha, o rosto pálido, os olhos a fugir dos meus. O silêncio entre nós era tão pesado que quase me sufocava. O relógio da parede marcava 22h17, mas para mim o tempo tinha parado naquele instante. Senti o chão fugir-me dos pés, como se de repente a casa onde vivi mais de quarenta anos já não fosse minha.
António tentou aproximar-se, mas recuei. – Maria do Carmo, deixa-me explicar… Não é o que parece…
– Não é o que parece? – interrompi, a voz a subir de tom. – Então explica-me tu, António! Explica-me porque é que uma tal de Helena te chama “meu amor” e tu lhe respondes com corações! Explica-me porque é que eu, depois de tantos anos, sou a última a saber que já não sou suficiente!
As lágrimas caíam-me pelo rosto, quentes e salgadas. Lembrei-me do dia em que casámos, na pequena igreja da aldeia, rodeados de família e amigos. Lembrei-me das promessas trocadas, das noites em claro com os nossos filhos pequenos, das discussões e das reconciliações. E agora… agora tudo parecia uma mentira.
António sentou-se à mesa, as mãos na cabeça. – Maria do Carmo… Eu não queria magoar-te. Juro que não aconteceu nada… Foi só conversa.
– Só conversa? – atirei, quase a rir de nervosismo. – Achas que isso me consola? Que me faz sentir menos traída?
Ouvia ao longe o som da televisão na sala, onde o nosso neto dormia no sofá depois de um dia inteiro connosco. Senti uma pontada no peito: que exemplo estávamos nós a dar-lhe? Que família era esta?
Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na cama, a olhar para o teto, a pensar em tudo o que tinha dado por garantido. A minha cabeça era um turbilhão: será que alguma vez fui suficiente? Será que ele alguma vez me amou de verdade? Ou será que fui apenas uma companhia conveniente?
No dia seguinte, acordei com os olhos inchados e o coração pesado. António já tinha saído para o café da vila, como fazia todas as manhãs. Fui à cozinha preparar o pequeno-almoço para o meu neto, tentando sorrir como se nada fosse. Mas ele olhou para mim com aqueles olhos grandes e inocentes e perguntou:
– Avó, estás triste?
Quis mentir-lhe, dizer-lhe que estava tudo bem. Mas não consegui. Limitei-me a abraçá-lo com força.
Ao longo dos dias seguintes, tentei manter as rotinas: ir ao mercado, cuidar do jardim, visitar a minha irmã Leonor ao fim da tarde. Mas tudo me parecia diferente. As vizinhas olhavam-me de lado, como se já soubessem de tudo. Em aldeias pequenas como a nossa, os segredos não duram muito tempo.
Uma tarde, Leonor sentou-se comigo à mesa da cozinha e segurou-me as mãos.
– Maria do Carmo… Tu tens de decidir o que queres para ti. Não fiques presa ao passado só porque tens medo do futuro.
– E se eu não souber viver sem ele? – confessei, envergonhada.
Ela sorriu tristemente. – Tu és mais forte do que pensas.
As palavras dela ecoaram em mim durante dias. Comecei a reparar em pequenas coisas: como António evitava olhar-me nos olhos; como passava mais tempo fora de casa; como eu própria já não sabia quem era sem ele.
Uma noite, decidi confrontá-lo de novo. Esperei que os filhos nos viessem visitar ao domingo para termos uma conversa séria.
– Pai – disse o nosso filho mais velho, João –, tens noção do que fizeste à mãe?
António baixou a cabeça. A nossa filha Inês chorava baixinho ao meu lado.
– Eu errei – admitiu ele finalmente. – Não tenho desculpa. Mas quero tentar consertar as coisas.
Olhei para os meus filhos e vi neles o reflexo da minha dor. Eles também estavam magoados, também sentiam o peso da traição.
Os dias foram passando e António fez alguns esforços: deixou de sair tanto, começou a ajudar mais em casa, tentou conversar comigo sobre coisas banais. Mas havia sempre um muro invisível entre nós.
Uma tarde chuvosa de novembro, sentei-me sozinha no banco do jardim e escrevi uma carta para mim própria:
“Maria do Carmo,
Não deixes que a dor te defina. Lembra-te de quem eras antes de seres mulher de António: filha dedicada, irmã protetora, mãe incansável. Mereces respeito e amor verdadeiro – mesmo que venha primeiro de ti para ti mesma.”
Guardei a carta na gaveta da mesa-de-cabeceira e decidi procurar ajuda profissional. Comecei a ir à psicóloga na cidade vizinha. Pela primeira vez em muitos anos, falei sobre mim sem ser através dos outros.
– Maria do Carmo – disse-me a Dra. Teresa –, perdoar não é esquecer nem desculpar o outro. É libertar-se do peso da mágoa.
Perguntei-lhe se alguma vez seria capaz disso.
– Só tu podes responder – sorriu ela.
Com o tempo, fui recuperando pequenas partes de mim: voltei a pintar quadros como fazia em jovem; inscrevi-me nas aulas de hidroginástica; comecei a sair com amigas para lanchar à pastelaria do Sr. Manuel.
António percebeu a mudança e tentou aproximar-se:
– Sentes-te melhor sem mim? – perguntou um dia, hesitante.
Olhei-o nos olhos pela primeira vez em meses.
– Sinto-me melhor comigo mesma – respondi com honestidade.
Ele chorou nesse dia. Pediu-me perdão outra vez e disse que estava disposto a fazer terapia connosco. Aceitei tentar – não por ele, mas por mim e pela história que construímos juntos.
A terapia foi dura: revivemos mágoas antigas, falámos sobre expectativas nunca cumpridas, sobre sonhos adiados por causa dos filhos ou do trabalho no campo. Descobri que também tinha falhado: deixei de cuidar de mim própria há muito tempo; deixei de lhe dizer quando precisava de carinho ou atenção.
Não foi fácil perdoar – nem esquecer. Ainda hoje há dias em que acordo com o coração apertado e me pergunto se fiz bem em ficar.
Mas aprendi uma coisa: ninguém pode preencher o vazio dentro de nós se não formos os primeiros a cuidar dele.
Hoje olho para António com outros olhos: já não vejo apenas o homem que me traiu, mas também o homem frágil e imperfeito com quem partilhei uma vida inteira. Às vezes rimos juntos das pequenas coisas; outras vezes choramos pelo que perdemos pelo caminho.
Os nossos filhos continuam presentes – preocupam-se comigo, mas também aprenderam que os pais são humanos e erram.
Não sei se algum dia voltarei a confiar plenamente em António. Mas sei que voltei a confiar em mim mesma – e isso ninguém me pode tirar.
E vocês? Já sentiram esse vazio dentro do peito? Já tiveram de escolher entre perdoar ou recomeçar sozinhos? O que fariam no meu lugar?