O Dia em que Aprendi a Dizer Não: O Sonho do Algarve e a Realidade da Família
— Não aguento mais, mãe! — gritei, sentindo a garganta arder e as lágrimas ameaçarem cair. O eco da minha voz perdeu-se entre as paredes brancas da nova casa, ainda cheirando a tinta fresca e promessas por cumprir. A minha mãe olhou para mim, surpresa, como se nunca me tivesse ouvido levantar a voz.
A verdade é que nunca tinha. Sempre fui aquela filha que dizia sim, que aceitava tudo calada, que engolia o orgulho para manter a paz. Mas naquele dia, naquele verão abrasador no Algarve, algo em mim quebrou.
Quando o António e eu decidimos largar Lisboa e comprar aquela pequena casa perto de Lagos, parecia um sonho. O mar azul-turquesa à porta, o cheiro a figos maduros no ar, o silêncio interrompido apenas pelas gaivotas. “Aqui vamos ser felizes”, prometeu-me ele, apertando-me a mão com força. Eu quis acreditar.
Durante os primeiros dias, tudo era novidade: as caminhadas ao pôr-do-sol, os jantares na varanda, o riso fácil. Mas bastou uma chamada para tudo mudar.
— Filha, sabes que o teu irmão está desempregado outra vez? — começou a minha mãe ao telefone, com aquele tom de quem já decidiu por mim. — E o teu pai anda tão em baixo… Não podiam vir passar uns dias convosco? Só até as coisas acalmarem.
O António olhou para mim, hesitante. Eu sabia o que ele pensava: “Se disseres sim agora, nunca mais vais conseguir dizer não.” Mas eu disse sim. Como sempre.
Na semana seguinte, a casa encheu-se de malas, vozes altas e discussões. O meu irmão passava os dias no sofá, a jogar PlayStation e a reclamar da vida. O meu pai criticava tudo: o calor, o peixe grelhado (“em Lisboa é melhor!”), até o cheiro do campo. A minha mãe ocupava-se da cozinha como se fosse dona da casa.
O António começou a afastar-se. Passava horas na praia sozinho ou inventava tarefas para fazer no jardim. Eu sentia-me presa entre dois mundos: o da família que sempre me exigiu tudo e o do homem que escolhi para construir uma vida nova.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre quem ia lavar a loiça — “Afinal, esta casa é tua ou nossa?” — fechei-me na casa de banho e chorei em silêncio. Lembrei-me das palavras da minha avó: “Se não deres valor a ti própria, ninguém te vai dar.”
No dia seguinte, tentei conversar com a minha mãe.
— Mãe, isto não está a resultar. Vocês vieram para uns dias e já passaram três semanas…
— Então agora vais pôr-nos na rua? — interrompeu ela, magoada.
— Não é isso! Só preciso de espaço… preciso de viver a minha vida.
— A tua vida? E nós? Somos família!
Senti-me egoísta. Mas também senti raiva. Porque é que ser filha significava anular-me sempre?
O António entrou na sala nesse momento.
— Maria, podemos falar?
Fomos até ao jardim. Ele olhou-me nos olhos:
— Isto não é o que combinámos. Eu amo-te, mas não consigo viver assim.
O medo apertou-me o peito. E se ele me deixasse? E se perdesse tudo?
Nessa noite não dormi. Pensei em todas as vezes que disse sim quando queria dizer não: quando aceitei estudar Direito porque era o sonho do meu pai; quando fiquei em Lisboa para cuidar da minha mãe depois do divórcio; quando adiei ter filhos porque o meu irmão precisava de ajuda.
De manhã, tomei uma decisão.
Chamei todos à sala. As mãos tremiam-me, mas falei:
— Preciso que vão embora. Preciso de espaço para mim e para o António. Amo-vos muito, mas esta casa é nossa. Quero ajudar-vos, mas não posso continuar assim.
O silêncio foi pesado. O meu irmão resmungou qualquer coisa sobre ingratidão. A minha mãe chorou baixinho. O meu pai levantou-se sem dizer palavra.
Durante horas senti-me horrível. Mas depois veio um alívio estranho — como se finalmente respirasse fundo depois de anos de apneia.
No dia em que partiram, fiquei sentada na varanda com o António. Ele pegou na minha mão:
— Estou orgulhoso de ti.
O sol pôs-se devagar sobre o mar calmo. Pela primeira vez em muito tempo, senti esperança.
Ainda hoje me pergunto: porque é tão difícil dizer não àqueles que amamos? Será egoísmo ou apenas sobrevivência? E vocês — já tiveram coragem de escolher por vocês próprios?