Entre a Poupança e o Afeto: O Preço do Meu Silêncio
— Maria, não mexas nesse pacote de bolachas! Só abrimos ao fim de semana, já sabes — a voz da minha mãe ecoava pela cozinha fria, enquanto eu, com sete anos, olhava para as bolachas como se fossem diamantes proibidos. O cheiro a sopa de couve pairava no ar, misturado com o aroma distante de pão torrado que vinha do apartamento da Dona Emília, no andar de cima. Eu sentia o estômago a roncar, mas sabia que não valia a pena discutir.
A minha infância foi feita de pequenas privações. Roupas herdadas das primas, sapatos com solas gastas, brinquedos improvisados com caixas de cartão. A minha mãe, a Dona Lurdes, era uma mulher de poucas palavras e muitos cálculos. Trabalhava como empregada de limpeza numa escola primária e fazia contas à vida como quem faz contas à alma: tudo contado, tudo medido.
Lembro-me de um Natal em particular. Tinha dez anos e sonhava com uma boneca nova, daquelas que via nas montras da Baixa. Mas quando desembrulhei o presente, encontrei um casaco azul-escuro, claramente usado, com o nome “Carla” ainda escrito na etiqueta. Sorri para não magoar a minha mãe, mas por dentro senti-me esmagada por uma tristeza que não sabia explicar.
— Maria, tu sabes que isto é para o teu bem. Um dia vais agradecer — dizia ela sempre que eu perguntava porque não podíamos comprar coisas novas ou ir ao cinema como as outras famílias.
Mas eu não queria agradecer. Queria apenas sentir que merecia algo só meu.
Na escola, os colegas gozavam comigo por usar roupas fora de moda. A professora Margarida olhava-me com pena quando eu levava pão seco com manteiga para o lanche, enquanto os outros exibiam bolos e sumos coloridos. Eu tentava esconder a vergonha atrás de sorrisos tímidos e silêncios prolongados.
O meu pai tinha-nos deixado quando eu era pequena. Nunca soube ao certo porquê. A minha mãe dizia apenas:
— O teu pai era um sonhador. E os sonhadores não pagam contas.
Cresci a ouvir que o dinheiro era tudo. Que sem ele não havia segurança, nem futuro. Mas à medida que os anos passavam, sentia que algo se perdia dentro de mim. Uma espécie de alegria silenciosa que nunca chegava a florescer.
Aos quinze anos, comecei a trabalhar num café ao fim de semana para comprar as minhas próprias coisas. A minha mãe ficou furiosa:
— Não precisas disso! Vais estragar os estudos! — gritava ela, mas eu já não conseguia ouvir só as suas razões. Queria sentir-me dona do meu destino, nem que fosse por umas horas.
Foi nessa altura que conheci o Rui. Ele era diferente dos outros rapazes do bairro: tinha sonhos grandes e um sorriso fácil. Começámos a namorar às escondidas porque a minha mãe não aprovava:
— Os rapazes só trazem problemas — dizia ela, sem nunca olhar nos meus olhos.
O Rui fazia-me sentir especial. Levava-me ao jardim público e comprava-me gelados nos dias quentes de verão. Pela primeira vez, senti que podia ser vista por alguém.
Mas a felicidade era sempre breve. Uma noite, cheguei tarde a casa e encontrei a minha mãe sentada à mesa da cozinha, com as mãos trémulas e os olhos vermelhos.
— Achas que isto é vida? Achas que eu gosto de te ver assim? — perguntou ela, quase num sussurro.
Sentei-me à sua frente e tentei explicar:
— Mãe, eu só quero ser feliz. Não quero viver sempre a contar trocos.
Ela levantou-se bruscamente e saiu da cozinha. Fiquei ali sozinha, a olhar para as paredes nuas e para o relógio antigo que marcava cada segundo da nossa distância.
Os anos passaram depressa demais. Entrei na universidade com uma bolsa de estudo — orgulho da minha mãe — mas sentia-me cada vez mais distante dela. As nossas conversas resumiam-se a perguntas práticas: “Já pagaste as propinas?”, “Tens comida suficiente?”, “Não te metas em dívidas”.
No segundo ano da faculdade, o Rui pediu-me em casamento. Eu hesitei. Não sabia se estava pronta para construir uma família quando ainda sentia tantas feridas abertas dentro de mim.
Contei à minha mãe numa tarde chuvosa de novembro. Ela ficou em silêncio durante longos minutos antes de dizer:
— Vais repetir os meus erros? Vais escolher o coração em vez da cabeça?
As palavras dela ficaram a ecoar na minha mente durante semanas. Acabei por recusar o pedido do Rui. Disse-lhe que precisava de tempo para me encontrar. Ele chorou e eu chorei com ele, mas no fundo sabia que estava apenas a repetir o ciclo de medo e renúncia que herdara da minha mãe.
Quando terminei o curso, consegui um emprego num escritório em Lisboa. Aluguei um pequeno apartamento e tentei começar de novo. Mas as marcas da infância continuavam lá: hesitava em gastar dinheiro em coisas simples como um jantar fora ou um vestido novo. Sentia culpa sempre que me permitia um pequeno luxo.
A minha mãe envelheceu depressa. Um dia ligaram-me do hospital: tinha tido um AVC ligeiro. Corri para junto dela e segurei-lhe a mão enquanto dormia. Olhei para o rosto cansado daquela mulher que sacrificara tudo por mim e perguntei-me se algum dia teria sido feliz.
Quando acordou, olhou para mim com uma ternura rara:
— Maria… desculpa se fui dura contigo. Só queria proteger-te do mundo.
Chorei baixinho ao lado dela. Percebi então que ambas tínhamos vivido presas pelo medo: ela do futuro, eu do passado.
Hoje tenho trinta e dois anos e continuo a lutar contra os fantasmas da escassez. Tento dar aos meus filhos aquilo que me faltou: tempo, atenção, pequenos prazeres sem culpa.
Mas às vezes pergunto-me: será que é possível encontrar equilíbrio entre segurança e felicidade? Ou estaremos todos condenados a repetir os erros dos nossos pais?
E vocês? Também sentem que pagaram um preço alto pelas escolhas dos vossos pais? O que fariam diferente se pudessem voltar atrás?