A Porta Que Nunca Se Abriu: O Desabafo de Uma Mãe à Beira do Silêncio
— Mãe, não podes simplesmente aparecer assim! — ouvi a voz do meu filho, abafada pelo intercomunicador, enquanto segurava o tabuleiro ainda quente dos pãezinhos de requeijão que ele tanto adorava em criança. O cheiro doce misturava-se com o frio da manhã lisboeta, mas o calor que eu esperava sentir naquele reencontro nunca chegou.
Fiquei ali, parada, com o coração a bater descompassado. O prédio antigo da Avenida de Roma parecia olhar para mim com pena, as janelas fechadas como olhos que já viram demasiadas histórias iguais à minha. Apertei o tabuleiro contra o peito, como se assim pudesse proteger-me da rejeição que acabara de ouvir.
— Desculpa, Tomás… Eu só queria… — tentei justificar-me, mas ele já tinha desligado. O silêncio do intercomunicador era mais ensurdecedor do que qualquer grito.
Desci as escadas devagar, cada degrau mais pesado que o anterior. Lembrei-me de quando ele era pequeno e corria para mim com os braços abertos, sujo de terra do jardim da nossa casa em Sintra. Agora, mal me deixava entrar na sua vida. O que é que tinha corrido tão mal?
Cheguei à rua e sentei-me num banco do jardim em frente ao prédio. As árvores balançavam suavemente ao vento, indiferentes à minha dor. Olhei para os pãezinhos e uma lágrima caiu sobre o papel vegetal. Senti-me ridícula — uma mãe a chorar por não ser recebida pelo próprio filho.
O telemóvel vibrou. Era uma mensagem da minha irmã, Teresa: “Então, já viste o Tomás? Como correu?” Hesitei antes de responder. Não queria preocupar ninguém, mas também não conseguia mentir.
“Não quis abrir a porta. Disse que estava ocupado.”
A resposta veio rápida: “Ele anda estranho desde que se separou da Marta. Dá-lhe tempo.”
Tempo. Sempre tempo. Mas quanto tempo é preciso para um filho voltar a precisar da mãe? Ou será que nunca volta?
O meu marido, António, morreu há três anos. Desde então, Tomás afastou-se cada vez mais. No início pensei que fosse o luto, mas agora parecia outra coisa — uma barreira invisível que eu não conseguia atravessar.
Voltei para casa com os pãezinhos intactos. O cheiro espalhou-se pela cozinha vazia e senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Peguei no telefone e disquei o número dele. Chamou até cair no voicemail.
— Tomás, sou eu… Só queria dizer que estou aqui. Sempre estive. Se precisares de alguma coisa… — a voz falhou-me — …de qualquer coisa mesmo… sabes onde estou.
Desliguei e sentei-me à mesa. O relógio marcava onze da manhã. Lembrei-me das manhãs de domingo em família: António a ler o jornal, Tomás a brincar com os legos no tapete da sala, eu a preparar o almoço. Agora só restava o silêncio e a memória.
À tarde fui ao supermercado. No corredor dos iogurtes encontrei a Marta, ex-nora e mãe da minha neta Leonor. Ela sorriu timidamente.
— Olá, D. Helena… Como está?
— Vou andando… E tu? E a Leonor?
— Está bem… Cresceu tanto desde a última vez que a viu.
Senti um aperto no peito. Não via a minha neta há meses. Tentei disfarçar a tristeza.
— O Tomás… está bem?
Ela hesitou antes de responder:
— Ele anda muito fechado… Não fala com quase ninguém. Eu própria tenho dificuldade em comunicar com ele.
— Ele não me deixou entrar hoje… — confessei, sentindo as lágrimas ameaçarem cair outra vez.
Marta pousou a mão no meu braço.
— Não é por si… Ele sente-se perdido desde que o pai morreu. E agora com o divórcio… Acho que tem medo de se apegar outra vez.
Agradeci-lhe e despedi-me rapidamente antes que as emoções me traíssem no meio do supermercado.
Em casa, sentei-me no sofá e liguei a televisão só para ter algum ruído à minha volta. Mas nada preenchia o vazio. Peguei num álbum antigo de fotografias: Tomás bebé nos meus braços; Tomás na escola primária; Tomás no casamento com Marta; Tomás a segurar Leonor pela primeira vez.
Onde é que perdi o meu filho? Será que fui demasiado protetora? Ou demasiado exigente? Recordei as discussões da adolescência — as notas baixas, as saídas à noite, as namoradas que não aprovei. Talvez tenha sido aí que começámos a afastar-nos sem percebermos.
Naquela noite sonhei com António. Ele sorria-me do outro lado da mesa e dizia:
— Dá-lhe tempo, Helena…
Acordei sobressaltada e percebi que estava a chorar.
Os dias seguintes passaram lentos e cinzentos. Tentei ocupar-me com pequenas tarefas: arrumar gavetas, regar plantas, fazer sopa para congelar. Mas tudo me parecia inútil sem alguém para partilhar.
Na sexta-feira seguinte recebi uma chamada inesperada.
— Mãe? — era Tomás, a voz cansada do outro lado da linha.
O coração disparou.
— Tomás! Estás bem?
— Preciso de falar contigo… Podes vir cá?
Nem hesitei. Vesti o casaco e apanhei o autocarro para Lisboa como se fosse uma jovem ansiosa pelo primeiro encontro.
Quando cheguei ao apartamento dele, hesitou antes de abrir a porta. Olhou-me nos olhos como se procurasse algo — talvez perdão, talvez compreensão.
— Entra… — disse finalmente.
A casa estava desarrumada, cheia de caixas por abrir e roupa espalhada pelo chão. Sentei-me no sofá enquanto ele preparava dois cafés na cozinha minúscula.
— Desculpa por domingo passado… Não estava preparado para ver ninguém — confessou ele, sem me olhar nos olhos.
— Eu só queria ajudar… — respondi baixinho.
Ele sentou-se ao meu lado e ficou em silêncio durante alguns minutos.
— Sinto-me sozinho, mãe… Desde que o pai morreu e depois com a Marta… Sinto que tudo desmoronou e não sei como voltar a ser quem era.
Peguei-lhe na mão como fazia quando era pequeno.
— Não tens de ser forte sozinho, Tomás. Eu estou aqui. Sempre estive.
Ele chorou no meu ombro como não fazia desde criança. E eu chorei com ele — lágrimas antigas misturadas com novas esperanças.
Ficámos ali abraçados até o café arrefecer na chávena.
Antes de sair, deixei-lhe os pãezinhos de requeijão na bancada da cozinha.
— Obrigado por nunca desistires de mim — murmurou ele ao despedir-se.
No caminho para casa senti um alívio estranho — como se tivesse recuperado uma parte perdida de mim mesma. Mas também fiquei com medo: será que este momento seria suficiente para reconstruir tudo o que se perdeu?
Agora escrevo estas palavras na esperança de que outras mães compreendam esta dor silenciosa: amar um filho é aceitar ser invisível quando eles precisam de crescer sozinhos. Mas será justo esperar sempre pelo regresso? Ou devemos aprender a viver com as portas fechadas?