Quando a Esperança é Tudo o que Resta: A Noite em que Rezei Pela Vida da Minha Mulher
— Senhor Ricardo, precisamos falar consigo. — A voz da médica cortou o silêncio do corredor como uma lâmina. O cheiro a desinfetante misturava-se ao frio que me subia pela espinha. Olhei para ela, tentando decifrar no rosto alguma esperança, mas só vi cansaço e preocupação.
— A sua mulher está muito mal. O coração dela está fraco e não sabemos se vai aguentar a noite. — As palavras ecoaram dentro de mim como um trovão. Senti as pernas fraquejarem. Maria, a minha Maria, aquela mulher que sempre foi mais forte do que eu, estava agora presa a máquinas, entre a vida e a morte.
Nunca fui homem de igreja. Cresci em Almada, numa família onde se rezava apenas nos funerais e casamentos. O meu pai dizia que Deus era para quem não tinha mais nada em que acreditar. Eu segui-lhe o exemplo — até aquela noite.
Sentei-me no banco duro do corredor, as mãos a tremerem. O relógio da parede marcava três da manhã. Lá fora, Lisboa dormia, indiferente à minha dor. Peguei no telemóvel e escrevi ao meu irmão:
«O médico diz que a Maria pode não passar desta noite.»
Ele respondeu quase de imediato:
«Estou contigo. Reza por ela.»
Rezar? Eu? Sorri com amargura. Mas o desespero é um bicho estranho — faz-nos fazer coisas em que nunca acreditámos. Fechei os olhos e, baixinho, pedi:
— Deus… se estás aí, não me leves a Maria. Não agora. Não assim.
As horas arrastaram-se. Lembrei-me do nosso primeiro encontro, na praia da Costa da Caparica. Ela ria-se do meu jeito desajeitado de meter conversa. Lembrei-me do dia em que nasceu o nosso filho, o Tomás, e de como ela me apertou a mão com força enquanto gritava de dor e de alegria.
Ouvia os passos apressados dos enfermeiros, os apitos das máquinas, os sussurros de outras famílias em sofrimento. A solidão era esmagadora. Senti-me pequeno, inútil, perdido.
De repente, ouvi uma voz conhecida:
— Ricardo? — Era a minha sogra, Dona Lurdes, com os olhos vermelhos de tanto chorar.
— Ela vai sair desta — disse-me, mais para se convencer do que para me consolar.
— Não sei… — respondi, sem conseguir esconder o medo.
— Deus não dorme — insistiu ela. — Vamos rezar juntos.
Dei-lhe a mão, embaraçado. Ela começou uma Avé-Maria e eu repeti as palavras como um menino perdido. Senti uma estranha paz a invadir-me. Talvez fosse só cansaço, talvez fosse mesmo fé.
O tempo parecia não passar. O Tomás ficou em casa dos meus pais, sem perceber metade do que se estava a passar. Tinha apenas seis anos e perguntava porquê a mãe não vinha para casa.
Às seis da manhã, a médica voltou.
— A sua mulher estabilizou. Ainda não está fora de perigo, mas reagiu bem à medicação.
Chorei como nunca tinha chorado na vida. Abracei Dona Lurdes e agradeci-lhe por não me ter deixado sozinho naquela noite interminável.
Os dias seguintes foram um teste à nossa resistência. A Maria acordou confusa, com tubos e fios por todo o lado. Quando me viu, sorriu com dificuldade:
— Estás aqui…
— Sempre — respondi, tentando não mostrar o quanto estava destruído por dentro.
A recuperação foi lenta e cheia de altos e baixos. Houve dias em que pensei que não íamos aguentar. Discutíamos por tudo e por nada: ela revoltada por estar presa à cama; eu cansado de fingir força quando só queria desaparecer.
Uma tarde, depois de mais uma discussão sobre as visitas — ela não queria ver ninguém — saí do quarto furioso. No corredor encontrei o padre António, capelão do hospital.
— Está tudo bem? — perguntou ele.
— Não sei… — respondi. — Sinto-me inútil. Não sei como ajudar.
Ele sentou-se ao meu lado:
— Às vezes ajudar é só estar presente. E rezar pode ser uma forma de estar presente quando já não temos mais nada para dar.
Fiquei a pensar nisso durante muito tempo. Comecei a rezar todas as noites antes de dormir, mesmo quando me sentia ridículo ou vazio por dentro.
A Maria foi melhorando devagarinho. Voltou para casa ao fim de um mês, mais fraca mas viva. O Tomás agarrou-se a ela como se nunca mais a quisesse largar.
Mas os problemas não acabaram ali. As contas começaram a acumular-se: rendas atrasadas, medicamentos caros, o salário cortado porque tive de faltar ao trabalho para cuidar dela e do nosso filho.
Uma noite, depois de pôr o Tomás na cama, sentei-me com a Maria na sala escura.
— Achas que vamos conseguir dar a volta? — perguntei-lhe.
Ela olhou para mim com aqueles olhos castanhos onde sempre encontrei coragem:
— Enquanto estivermos juntos… temos tudo.
Chorei outra vez. Não era vergonha — era alívio por ainda a ter ali ao meu lado.
A família ajudou como pôde: os meus pais trouxeram comida; Dona Lurdes ficou com o Tomás quando eu precisava ir trabalhar; até o vizinho do lado se ofereceu para ir buscar medicamentos à farmácia.
Mas nem tudo eram gestos de solidariedade. O meu irmão começou a afastar-se — dizia que eu estava obcecado com religião e que devia preocupar-me mais com dinheiro do que com rezas.
— Achas mesmo que rezar resolve alguma coisa? — atirou ele num jantar de domingo.
— Não sei… mas ajudou-me a não enlouquecer — respondi-lhe.
A verdade é que nunca mais fui o mesmo depois daquela noite no hospital. Passei a valorizar pequenas coisas: um café quente pela manhã, o sorriso do Tomás ao acordar, o cheiro da Maria quando me abraça antes de dormir.
Hoje olho para trás e percebo que foi a esperança — aquela fé teimosa que nasceu do desespero — que nos manteve vivos como família. Não sei se foi Deus ou apenas sorte; talvez tenha sido um pouco dos dois.
Às vezes pergunto-me: quantos de nós só descobrimos o poder da fé quando já não temos mais nada? E será preciso perder quase tudo para aprender a dar valor ao que realmente importa?