Trinta Anos de Casamento Desfeitos: Entre o Amor e o Abismo
— Não me olhes assim, António. Não sou eu que estou a destruir isto — disse-lhe, com a voz embargada, enquanto as lágrimas me queimavam os olhos. Ele ficou parado à porta da cozinha, os punhos cerrados, como se quisesse agarrar o tempo e voltar atrás. Mas já não havia volta.
Durante trinta anos, fui a esposa perfeita. Ou pelo menos tentei sê-lo. Cresci em Vila Nova de Gaia, numa família onde as mulheres aprendiam cedo a calar e a sorrir. Casei-me com António aos vinte e dois anos, depois de um namoro breve mas intenso. Ele era trabalhador, honesto, filho de pescadores. A minha mãe dizia-me sempre: “Homem que trabalha e não bebe é tesouro.” E eu acreditei.
Os primeiros anos foram felizes, ou assim me parecia. Tínhamos pouco, mas tínhamos sonhos. A casa pequena, o cheiro a café de manhã, as conversas sussurradas à noite quando os miúdos já dormiam. O António era carinhoso, fazia-me rir com as suas histórias do mar. Tivemos dois filhos: a Mariana e o Tiago. A vida era simples, mas cheia.
Mas o tempo passa, e com ele vieram as rotinas. O António começou a trabalhar mais horas no armazém, chegava tarde e cansado. Eu fiquei em casa, a cuidar dos filhos, da roupa, da comida. Os dias tornaram-se iguais uns aos outros. O amor foi-se transformando em hábito, depois em silêncio.
Foi nessa altura que o Jorge se mudou para o prédio ao lado. Era viúvo, professor reformado, com um sorriso triste e uns olhos que pareciam ver tudo. Começámos a falar por acaso, na mercearia da Dona Rosa. Ele perguntava-me sempre como estava, se precisava de ajuda com as compras. Eu ria-me e dizia que não precisava de nada — mas no fundo precisava de ser vista.
As conversas tornaram-se mais frequentes. Falávamos de livros, de música, de sonhos antigos. O Jorge lembrava-me quem eu era antes de ser só mãe e esposa. Um dia convidou-me para tomar um café no seu apartamento. Hesitei, mas fui. Sentámo-nos à janela a ver o Douro ao longe e ele contou-me da mulher que perdera para o cancro, dos filhos que viviam longe. Senti uma dor estranha no peito — uma mistura de compaixão e desejo.
Começámos a encontrar-nos às escondidas. No início era só conversa, mas depois vieram os toques furtivos, os beijos roubados no corredor do prédio. Senti-me viva outra vez. Mas também culpada — tão culpada que às vezes não conseguia olhar para os meus filhos sem sentir vergonha.
O António começou a desconfiar. Chegava a casa e olhava-me de lado, perguntava onde tinha estado, porque demorava tanto nas compras. Uma noite, depois do jantar, atirou o prato à parede e gritou:
— Achas que sou parvo? Achas que não vejo?
A Mariana chorou na sala. O Tiago saiu porta fora sem dizer nada. Eu fiquei ali, parada, sem saber o que fazer.
Os dias seguintes foram um inferno. O António deixou de falar comigo. Dormíamos em quartos separados. A Mariana evitava-me o olhar; o Tiago quase não vinha a casa. Senti-me sozinha como nunca.
O Jorge dizia-me para ter coragem, para pensar em mim pela primeira vez na vida.
— Tu mereces ser feliz, Leonor — sussurrava ele ao meu ouvido.
Mas será que merecia? Tinha traído tudo aquilo em que acreditava: a família, os filhos, os valores que me ensinaram desde pequena.
Um domingo à tarde, sentei-me com o António na sala. Ele estava com os olhos vermelhos de tanto chorar — nunca o tinha visto assim.
— Leonor… — disse ele baixinho — Se já não me amas, diz-me. Não aguento mais esta mentira.
Olhei para ele e percebi que já não havia volta atrás.
— Não sei se alguma vez te amei como devia — respondi-lhe — Fui tua mulher porque era isso que esperavam de mim. Mas agora… agora preciso de ser eu.
Ele levantou-se devagar e saiu de casa sem olhar para trás.
Os meses seguintes foram um caos. Os vizinhos começaram a cochichar sempre que eu passava na rua. A minha mãe deixou de me falar; disse-me que tinha vergonha de mim. A Mariana mudou-se para Lisboa e deixou de atender as minhas chamadas. Só o Tiago vinha às vezes jantar comigo — mas nunca falávamos do assunto.
O Jorge queria começar uma vida nova comigo, mas eu sentia-me presa ao passado. Tinha medo do futuro, medo do julgamento dos outros, medo de perder tudo.
Uma noite acordei sobressaltada com uma mensagem da Mariana: “Mãe, porque fizeste isto?” Senti um vazio tão grande dentro de mim que pensei que ia morrer ali mesmo.
Fui ter com o Jorge ao seu apartamento e chorei nos seus braços como uma criança perdida.
— Não sei se fiz bem — disse-lhe — Perdi tudo.
Ele abraçou-me com força:
— Não perdeste tudo, Leonor. Encontraste-te a ti própria.
Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento perto do rio. O Jorge visita-me todos os dias; às vezes dorme cá, outras vezes vai para casa dele. A Mariana ainda não me perdoou; o Tiago tenta manter a paz entre nós todos.
Às vezes sento-me à janela a ver o Douro e pergunto-me se valeu a pena trocar trinta anos de estabilidade por esta incerteza cheia de saudade e esperança.
Será que alguma vez é tarde demais para recomeçar? Ou será que passamos a vida inteira a tentar agradar aos outros e esquecemo-nos de nós próprios?
E vocês? O que fariam no meu lugar?