Entre Silêncios e Palavras Não Ditas: O Diário Esquecido do Meu Filho

“Se eu ficar quieto, talvez a mãe não me ame menos.”

As palavras, escritas com letras tortas e inseguras, saltaram-me aos olhos assim que abri aquele caderno antigo. O cheiro de papel envelhecido misturava-se ao pó do fundo da gaveta, mas nada era mais sufocante do que a frase na primeira página. Sentei-me no chão do quarto vazio do meu filho, rodeada por brinquedos esquecidos e livros de histórias que já não fazem parte das nossas noites. O silêncio da casa parecia gritar comigo.

Lembro-me de quando o Miguel era pequeno. Tinha uns olhos enormes, sempre atentos, e uma energia que parecia não caber-lhe no corpo. Eu, mãe solteira desde cedo, tentava equilibrar dois empregos e a casa. “Faz menos barulho, Miguel!”, repetia vezes sem conta, sem perceber que cada palavra era uma pedra a mais no muro que ele construía à sua volta.

— Mãe, posso mostrar-te o desenho que fiz na escola? — perguntava ele, segurando uma folha amachucada.

— Agora não, Miguel. Estou cansada. Vai brincar para o teu quarto.

Ele ia. Sempre ia. E eu dizia a mim mesma: “Estou a fazer o melhor que posso.” Mas será que estava mesmo?

O pai dele, o Rui, foi embora quando o Miguel tinha três anos. Disse que não estava preparado para ser pai, que precisava de tempo para si. Nunca mais voltou. Fiquei sozinha com um filho pequeno e uma pilha de contas por pagar. Os meus pais ajudavam como podiam, mas viviam longe, em Viseu. Eu morava em Almada, num T2 pequeno com vista para a ponte, mas sem vista para o futuro.

As noites eram longas. O Miguel chorava muitas vezes e eu perdia a paciência.

— Por favor, Miguel! Só quero dormir um bocado! — gritava eu, sem pensar.

Ele calava-se. E eu sentia-me horrível depois. Mas no dia seguinte tudo recomeçava: trabalho, correrias, gritos abafados.

Quando ele entrou para a escola primária, as professoras diziam sempre:

— O Miguel é muito calado. Participa pouco nas atividades.

Eu encolhia os ombros.

— Ele é assim em casa também. Gosta de estar no seu canto.

Mas nunca perguntei porquê. Nunca quis saber se aquele silêncio era escolha ou escudo.

Agora, com este caderno nas mãos, tudo faz sentido. Cada página tem desenhos de casas pequenas e pessoas sem rosto. Numa delas, uma mulher com cabelo comprido — igual ao meu — está sentada num sofá a olhar para um telemóvel. Um menino está ao lado dela, com uma nuvem cinzenta por cima da cabeça.

“Hoje a mãe ficou triste comigo porque deixei cair o copo.”

“Queria que a mãe sorrisse mais.”

“Se eu for bom menino, talvez ela me abrace.”

As lágrimas caem-me pelo rosto sem pedir licença. Sinto-me esmagada pelo peso de tudo o que não vi, de tudo o que não disse.

O Miguel tem agora vinte anos. Estuda Engenharia Informática na Universidade do Porto e só vem a casa nos feriados. As conversas são curtas:

— Está tudo bem na faculdade? — pergunto.

— Está sim, mãe.

— Precisas de alguma coisa?

— Não, está tudo bem.

E volta ao telemóvel ou ao computador. Às vezes penso em abraçá-lo, mas há um muro invisível entre nós — feito de anos de silêncios e desencontros.

Lembro-me de um Natal em particular. Ele devia ter uns doze anos. A árvore estava montada na sala e eu embrulhava presentes à pressa.

— Mãe, posso ajudar?

— Não mexas nisso agora! Vai ver televisão.

Ele foi. Sempre foi.

No dia seguinte, encontrei um bilhete no meu casaco: “Feliz Natal, mãe. Gosto muito de ti.”

Nunca lhe respondi. Nunca lhe disse que também gostava dele — achava que era óbvio. Mas será que era mesmo?

O caderno continua nas minhas mãos. Folheio mais umas páginas e encontro um desenho diferente: duas pessoas de mãos dadas num parque cheio de flores coloridas. Em baixo está escrito: “Gostava que fosse sempre assim.”

Sinto uma dor aguda no peito. Quantas vezes lhe neguei um passeio no parque porque estava cansada? Quantas vezes troquei um abraço por um suspiro impaciente?

O telefone toca e sobressalto-me. É a minha mãe.

— Estás bem, filha?

A voz dela é suave, mas carrega anos de distância e saudade.

— Estou… — minto — Encontrei um caderno antigo do Miguel.

Ela suspira do outro lado.

— Sempre foi um menino sensível… Lembras-te quando ele te fazia desenhos para colares no frigorífico?

Lembro-me sim. E lembro-me também de os ter guardado numa gaveta qualquer porque não combinavam com a decoração da cozinha.

Desligo o telefone e fico ali sentada no chão frio do quarto dele. Olho à volta: posters de bandas antigas, livros de programação empilhados na secretária, uma camisola esquecida na cadeira. Tudo parece tão distante agora.

De repente lembro-me de uma conversa recente:

— Miguel, queres jantar comigo este fim-de-semana?

— Não posso, mãe… Tenho trabalho da faculdade.

— Mas podias tirar um tempinho para mim…

Ele hesitou antes de responder:

— Eu tento…

Nunca apareceu.

Será que ele ainda sente que precisa de ser invisível para não me incomodar? Será que ainda pensa que o meu amor depende do seu silêncio?

Levanto-me devagar e pego no telemóvel. Escrevo-lhe uma mensagem:

“Encontrei um caderno teu antigo… Queria pedir-te desculpa por tudo o que não vi e não disse. Amo-te muito.”

Fico à espera da resposta com o coração apertado. Passam minutos intermináveis até surgir uma notificação:

“Eu também te amo, mãe.”

Choro outra vez — desta vez de alívio e tristeza misturados.

A vida é feita destes pequenos silêncios e palavras não ditas. Quantos filhos aprendem a ser invisíveis para caberem no amor dos pais? Quantos pais só percebem tarde demais o peso das suas ausências?

E vocês? Já disseram hoje aos vossos filhos — ou aos vossos pais — aquilo que sentem? Ou será que também guardam silêncios dolorosos nas gavetas da memória?