Quando a Minha Filha Desapareceu e Fiquei com o Meu Neto: Uma Luta Contra o Tempo e o Destino

— Mãe, podes ficar com o Martim só esta semana? Preciso mesmo de resolver umas coisas. — A voz da Inês tremia do outro lado da linha, mas eu não quis acreditar que fosse mais do que cansaço. O Martim, com os seus olhos grandes e curiosos, já me puxava pela mão, ansioso por mais uma história antes de dormir.

Aceitei sem hesitar. Afinal, o que são sete dias na vida de uma avó? Mas agora, passados três meses, cada manhã começa com o mesmo ritual: olho para o telemóvel, verifico o email, espreito pela janela antes de abrir a porta. O medo de ouvir a campainha e ver alguém dos serviços sociais do outro lado consome-me. “A senhora não é a mãe. Tem de entregar o menino.” Imagino estas palavras vezes sem conta.

A Inês sempre foi uma alma inquieta. Cresceu entre livros e sonhos maiores do que a vila onde vivemos, perto de Coimbra. O pai dela morreu cedo, num acidente de mota, e eu fiz tudo para lhe dar um mundo seguro. Talvez tenha falhado. Talvez tenha sido demasiado dura quando ela engravidou do Martim aos 19 anos. Mas tentei sempre estar presente, mesmo quando ela se afastava.

Naquela semana em que me deixou o Martim, notei-lhe um olhar estranho. Não era só cansaço — era medo. Perguntei-lhe se estava tudo bem, mas ela sorriu e disse: — Mãe, é só trabalho. Preciso de resolver umas coisas em Lisboa. Volto já.

Os dias passaram e ela não voltou. Liguei-lhe dezenas de vezes. Mensagens sem resposta. Falei com as amigas dela, com colegas do trabalho. Ninguém sabia de nada. Fui à polícia. Disseram-me para esperar, que às vezes os adultos desaparecem por vontade própria. Mas eu conheço a minha filha. Ela nunca deixaria o Martim assim.

O Martim pergunta-me todos os dias: — Avó, quando é que a mãe volta?

Invento desculpas: — Está a trabalhar muito, querido. Vai voltar logo que puder.

Mas ele sente a minha ansiedade. Tem pesadelos à noite e acorda a chamar pela mãe. Eu abraço-o com força, tentando transmitir-lhe uma segurança que já não sinto.

As contas começam a acumular-se. A reforma mal chega para nós os dois. O supermercado tornou-se um campo minado: cada escolha é um cálculo entre o que posso e não posso comprar. Uma vez, tive de pedir fiado na mercearia do senhor António.

— Dona Teresa, não se preocupe — disse-me ele, baixinho, enquanto me passava o saco das compras. — Todos sabemos que está a passar um mau bocado.

A vergonha queimou-me as faces, mas agradeci em silêncio.

Os vizinhos começaram a perguntar pela Inês. Alguns olham-me com pena; outros com desconfiança.

— Teresa, tens de ir ao Centro de Saúde pedir apoio — aconselhou-me a minha amiga Rosa. — E se os serviços sociais aparecem? Eles podem levar-te o Martim!

O pânico instalou-se em mim como uma doença lenta e corrosiva. Fui à Segurança Social pedir ajuda. A funcionária olhou-me por cima dos óculos:

— A senhora tem algum documento que prove que pode ficar com o menino?

— Não… A mãe dele deixou-o comigo…

Ela suspirou:

— Sem tutela legal, pode ser complicado. Se alguém denunciar…

Saí dali a tremer. Passei noites em claro a pensar no que faria se me tirassem o Martim. Ele é tudo o que me resta da Inês.

Uma tarde, enquanto ele desenhava na mesa da cozinha, ouvi vozes no corredor do prédio. O coração disparou-me no peito. Fui espreitar pelo olho mágico: era só a vizinha do terceiro andar com as compras.

Mas o medo não me larga.

Comecei a procurar pistas sobre o paradeiro da Inês. Vasculhei as redes sociais dela, enviei mensagens a conhecidos antigos, até procurei grupos online de pessoas desaparecidas em Portugal. Cada resposta negativa era uma punhalada.

O Martim adoeceu com febre alta numa noite chuvosa de novembro. Levei-o ao hospital público mais próximo. A médica olhou para mim e perguntou:

— É avó? Onde está a mãe?

— Está fora… trabalho — menti, sentindo-me pequena sob aquele olhar clínico.

Preenchi papéis, assinei autorizações falsas, rezei para que ninguém desconfiasse.

Em casa, comecei a guardar todos os documentos possíveis: certidão de nascimento do Martim, cartões de saúde, até fotografias da Inês comigo e com ele — como se isso pudesse provar que sou família dele.

Uma noite, recebi uma chamada anónima.

— Teresa? — A voz era abafada, quase irreconhecível.

— Inês?! Filha?! Onde estás?

Silêncio do outro lado.

— Desculpa… Não posso falar… Amo-vos muito…

A chamada caiu antes que eu pudesse perguntar mais alguma coisa.

Passei horas a tentar ligar de volta, mas sem sucesso.

No dia seguinte fui à polícia outra vez, contei sobre a chamada. Disseram-me que iam investigar, mas não me deram esperança.

O Martim percebeu que algo estava diferente.

— Avó, porque choras?

Abracei-o com força e disse:

— Porque tenho muitas saudades da tua mãe…

Ele encostou-se ao meu peito e adormeceu ali mesmo.

Os dias tornaram-se rotinas de sobrevivência: acordar cedo para preparar o pequeno-almoço, levar o Martim ao jardim público (onde ele brinca sozinho porque as outras crianças dizem que ele não tem mãe), voltar para casa e tentar encontrar forças para mais um dia sem respostas.

Uma tarde recebi uma carta dos serviços sociais: queriam marcar uma visita domiciliária para “verificar as condições do menor”.

O pânico tomou conta de mim outra vez. Passei dois dias a limpar a casa até brilhar, comprei flores frescas para disfarçar o cheiro a humidade do inverno e vesti o Martim com a melhor roupa.

Quando chegaram — uma senhora jovem e um homem mais velho — tentei sorrir e mostrar-lhes tudo: os brinquedos do Martim arrumados na caixa, os desenhos colados no frigorífico, o quarto impecável.

— A senhora tem algum contacto da mãe? — perguntou a assistente social.

— Não… Ela desapareceu… Estou à espera…

Eles trocaram olhares sérios e anotaram coisas num bloco.

— Vamos ter de avaliar a situação — disseram antes de sair.

Fechei a porta e desabei em lágrimas no corredor.

Nessa noite sonhei que levavam o Martim embora e eu corria atrás deles pelas ruas da vila, gritando por ajuda enquanto todos fechavam as janelas.

Acordei suada e soluçando baixinho para não acordar o meu neto.

Agora vivo neste limbo: entre a esperança de que a Inês volte e o medo constante de perder o Martim também.

Pergunto-me todos os dias: será que fiz tudo certo? Será que devia ter sido mais dura com a Inês? Ou mais compreensiva? E agora? Como é que se sobrevive à ausência dos filhos sem perder também os netos?

Se fosse convosco… O que fariam? Até onde iriam para proteger quem amam?