Entre Cinzas e Esperança: A História de Inês e os Bombeiros de Monchique

— Mãe, eles vão conseguir salvar a nossa casa? — perguntei, com a voz trémula, enquanto o cheiro a fumo entrava pela janela da cozinha. A minha mãe, com as mãos trémulas a apertar o pano da loiça, olhou-me nos olhos e tentou sorrir.

— Inês, os bombeiros estão a fazer tudo o que podem. Temos de ter esperança, filha.

Mas eu via o medo nos olhos dela. O céu estava cor de laranja, e as cinzas caíam como neve suja sobre o quintal. Ouvia-se ao longe o som das sirenes e o rugido das chamas. Tinha oito anos e sentia-me tão pequena diante daquele inferno.

O meu pai estava lá fora, com os vizinhos, a molhar os telhados com mangueiras. A minha avó rezava baixinho no sofá, o terço enrolado nos dedos. O meu irmão mais novo chorava sem perceber bem o que se passava. E eu? Eu só queria fazer alguma coisa para ajudar.

Naquela noite não dormi. Fiquei à janela a ver as luzes vermelhas dos camiões dos bombeiros a subir e descer a serra. Lembrei-me do bombeiro António, que conhecia do café da vila. Ele costumava brincar comigo e dar-me rebuçados quando ia lá com a minha mãe. Agora, talvez estivesse ali no meio do fogo, cansado, com sede, com medo.

No dia seguinte, quando o fumo acalmou um pouco, corri até à cozinha e comecei a desenhar. Fiz corações vermelhos, casas com telhados intactos, árvores verdes. Escrevi: “Obrigado por nos protegerem”. Pedi à minha mãe para me ajudar a fazer bolos de laranja — os preferidos do bombeiro António.

— Inês, não podemos sair de casa — disse ela, preocupada.

— Mas mãe… eles precisam disto mais do que nunca! — insisti, com lágrimas nos olhos.

Ela suspirou e acabou por ceder. Juntámos os bolos e os desenhos numa caixa e fomos até ao quartel dos bombeiros da vila. O cheiro a fumo era ainda mais forte ali. Os homens estavam sujos, exaustos, alguns sentados no chão com as cabeças entre as mãos.

Quando me viram com a caixa, abriram um sorriso cansado. O bombeiro António veio ter comigo.

— Inês! O que trazes aí?

— Fiz bolos para vocês… e desenhos também. Para terem força — disse, tentando não chorar.

Ele ajoelhou-se à minha frente e abraçou-me.

— Obrigado, miúda. Isto vale mais do que ouro agora.

Vi lágrimas nos olhos dele. E naquele momento percebi que, mesmo pequena, podia fazer diferença.

Os dias seguintes foram um pesadelo. O fogo aproximava-se cada vez mais da nossa aldeia. Uma noite fomos obrigados a sair de casa à pressa. A minha mãe gritava para eu pegar no meu peluche preferido e no casaco do meu irmão. O meu pai ficou para trás para ajudar os vizinhos.

No centro de acolhimento da escola primária, dormíamos em colchões no chão. Havia dezenas de pessoas ali: idosos assustados, crianças perdidas sem brinquedos, mães a tentar acalmar bebés inquietos. Ouvia-se sempre alguém a chorar ou a rezar.

Uma tarde vi o bombeiro António entrar na escola. Trazia o rosto negro de fuligem e os olhos vermelhos de cansaço. Corri para ele.

— A nossa casa…?

Ele hesitou antes de responder.

— Fizemos tudo o que podíamos, Inês… Algumas casas ficaram de pé, outras não resistiram. Mas vocês estão bem, isso é o mais importante.

Senti um nó na garganta. A minha mãe chorou baixinho ao ouvir as notícias dos vizinhos: a casa da dona Rosa tinha ardido toda; o senhor Manuel perdeu o pomar; a escola da aldeia ficou destruída.

Os dias passaram devagar. Os bombeiros continuavam a lutar contra as chamas sem descanso. Eu continuei a desenhar para eles — agora com árvores queimadas e corações partidos, mas sempre com uma mensagem de esperança: “Vai ficar tudo bem”.

Uma noite ouvi os meus pais a discutir baixinho:

— Não temos para onde ir se perdermos tudo… — dizia o meu pai.

— E as crianças? Como é que lhes explicamos? — soluçava a minha mãe.

Senti-me invisível naquele momento, mas também cresci um pouco por dentro. Percebi que os adultos também têm medo e não têm sempre respostas.

Quando finalmente pudemos voltar à aldeia, viemos de mãos dadas, em silêncio. A nossa casa estava chamuscada mas de pé. O jardim era agora terra preta e árvores queimadas. O cheiro a fumo nunca mais saiu das minhas roupas nem dos meus sonhos.

No entanto, algo mudou em mim e na minha família depois daqueles dias. Os vizinhos ajudaram-se uns aos outros como nunca antes. Os bombeiros passaram a ser heróis reais para todos nós — não só porque apagaram o fogo, mas porque nos deram esperança quando tudo parecia perdido.

Anos depois ainda guardo alguns dos desenhos que fiz para eles — agora amarelados pelo tempo mas cheios de memórias vivas. Sempre que vejo notícias de incêndios na televisão, lembro-me do medo, mas também da força que encontrei naqueles dias difíceis.

Hoje pergunto-me: quantas crianças como eu terão sentido aquele medo? Quantas famílias terão encontrado esperança nos pequenos gestos? Será que todos nós conseguimos ver os verdadeiros heróis à nossa volta antes que seja tarde demais?