Entre o Medo e o Amor: O Dia em que Salvei a Minha Filha
— Pai! Socorro! — O grito da Inês cortou o ar como uma lâmina, gelando-me o sangue nas veias. Estávamos no parque de campismo da Barragem de Castelo de Bode, um daqueles fins de semana em que tentava compensar a ausência dos dias de trabalho. O sol brilhava, as risadas das crianças misturavam-se com o som da água, e por um instante, acreditei que tudo estava bem. Mas bastou um segundo para o mundo desabar.
Corri para a margem do lago, tropeçando nas pedras, sentindo o coração a bater tão forte que parecia querer saltar do peito. Vi a Inês, a minha filha de oito anos, a debater-se na água, os braços a baterem freneticamente, o rosto contorcido pelo pânico. O tempo parou. Não pensei. Atirei-me para dentro de água, sentindo o frio cortar-me a pele e a roupa a pesar-me nos ombros.
Enquanto nadava, ouvi atrás de mim a voz da minha mulher, Sofia, gritar:
— Miguel! Cuidado!
Mas não havia cuidado possível. Só havia medo. E amor. E uma urgência que me fez esquecer tudo: trabalho, contas por pagar, discussões antigas com a Sofia sobre as minhas ausências, as noites em que cheguei tarde demais para ver a Inês adormecer.
A água parecia puxar-me para baixo, como se quisesse castigar-me por todas as vezes em que não estive presente. Mas eu continuei. Agarrei a Inês pelos ombros, sentindo-a escorregar entre os meus braços magros. Ela tossia, olhos arregalados de terror.
— Estou aqui, filha! — gritei-lhe ao ouvido, tentando transmitir-lhe uma segurança que eu próprio não sentia.
Com esforço, consegui puxá-la para junto do cais improvisado. Sofia já estava lá, ajoelhada, braços estendidos. Juntos, tirámos a Inês da água. Ela chorava baixinho, tremia como um passarinho molhado.
— Desculpa, pai… — murmurou ela, entre soluços.
Abracei-a com força. Senti as lágrimas misturarem-se com a água do lago no meu rosto.
— Não tens de pedir desculpa, meu amor. Eu é que devia ter estado mais atento.
O silêncio caiu sobre nós como uma nuvem pesada. Sofia olhou para mim com olhos vermelhos, mas não disse nada. Havia tanto por dizer — tantas mágoas acumuladas, tantas palavras não ditas.
Naquela noite, depois de termos voltado para casa e posto a Inês na cama, sentei-me na varanda com Sofia. O cheiro da terra molhada misturava-se com o aroma do café que ela me trouxe.
— Achas que algum dia vamos conseguir ser uma família normal? — perguntei-lhe em voz baixa.
Ela suspirou.
— O que é ser normal? Tu trabalhas tanto para nos dar tudo… mas às vezes só precisamos de ti aqui. Não só quando acontece uma tragédia.
As palavras dela doeram mais do que qualquer arranhão ou corte que tivesse sofrido naquele dia. Olhei para as minhas mãos — mãos que salvaram uma vida mas que tantas vezes estiveram ausentes das pequenas coisas: um desenho da Inês na escola, um jantar em família sem telemóvel na mesa.
— Eu sei — respondi. — Tenho medo de não saber ser pai…
Sofia pousou a mão sobre a minha.
— Ninguém sabe. Mas hoje tu foste o pai que ela precisava.
O silêncio instalou-se novamente, mas desta vez era um silêncio diferente — não de mágoa, mas de compreensão mútua.
No dia seguinte, levei a Inês à escola. Ela olhou para mim antes de sair do carro e disse:
— Pai… prometes que vais estar mais vezes comigo?
O nó na garganta quase não me deixou responder.
— Prometo, filha. Prometo mesmo.
Durante semanas depois do acidente, os pesadelos visitaram-me todas as noites. Via a Inês afundar-se na água escura e acordava suado, ofegante. Comecei a sair mais cedo do trabalho, recusei convites para reuniões ao fim de semana. Passei a ir buscá-la à escola sempre que podia e aos sábados fazíamos panquecas juntos.
Mas nem tudo era fácil. O meu chefe começou a pressionar:
— Miguel, precisamos de ti aqui com mais frequência. Não podes continuar assim…
E eu sentia-me dividido entre dois mundos: o da família e o do trabalho. Sofia também sentia essa tensão:
— Não quero que percas o emprego por nossa causa…
Mas eu já não conseguia voltar ao que era antes. Aquele momento no lago mudou-me para sempre.
Certa noite, durante um jantar em casa dos meus pais em Santarém, o meu pai — homem duro, criado no campo — olhou-me nos olhos e disse:
— Quando eras pequeno também quase te afogaste no Tejo. Lembras-te?
Assenti em silêncio. Lembrava-me do medo, da sensação de impotência.
— Na altura achei que era culpa tua — continuou ele — mas hoje percebo que fui eu que não estava atento.
As palavras dele ecoaram dentro de mim como um trovão distante. Talvez todos nós carreguemos culpas antigas e medos herdados dos nossos pais.
A vida foi voltando ao normal — ou ao novo normal. A Inês recuperou o sorriso e eu aprendi a valorizar cada momento ao lado dela e da Sofia. Ainda tenho medo — medo de falhar como pai, medo de perder quem amo — mas aprendi que o amor é feito destes momentos: dos sustos, das lágrimas e dos abraços apertados depois do perigo passar.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes precisamos de enfrentar o medo para percebermos o que realmente importa? E vocês? Já sentiram esse medo paralisante por alguém que amam?