O Último Desejo de Tiago: Uma Vida, Milhares de Livros e Um Legado de Esperança

— Mãe, achas que as outras crianças no hospital também sentem tanto medo à noite como eu? — perguntou-me Tiago, com os olhos grandes e brilhantes, agarrado ao seu urso de peluche já gasto. O monitor cardíaco apitava baixinho, quase como se quisesse ouvir a resposta.

Engoli em seco. O cheiro a desinfetante misturava-se com o perfume suave do champô infantil. — Acho que sim, meu amor. Mas tu és muito corajoso.

Ele sorriu, mas logo ficou sério. — Se eu tivesse muitos livros, não tinha tanto medo. Os livros fazem-me viajar para longe daqui. — Fez uma pausa, olhando para a janela onde a chuva batia com força. — E se eu desse livros a todas as crianças daqui? Assim ninguém tinha medo.

Foi assim que tudo começou. Tiago tinha apenas seis anos quando lhe diagnosticaram leucemia. O mundo desabou à nossa volta. O meu marido, António, ficou em choque. A minha mãe, Dona Rosa, rezava todos os dias, enquanto o meu irmão Miguel dizia que era tudo uma injustiça divina. Eu sentia-me perdida, mas Tiago… Tiago só queria ler e partilhar histórias.

— Não podemos alimentar-lhe falsas esperanças — disse António uma noite, depois de Tiago adormecer. — Ele devia descansar, não andar com ideias de recolher livros.

— Mas é isso que lhe dá força! — respondi, quase a gritar. — Não vês que é o sonho dele?

A tensão entre nós crescia a cada dia. António queria proteger o filho do mundo; eu queria dar-lhe o mundo enquanto ainda podia. Miguel ajudava-me a divulgar o pedido do Tiago nas redes sociais: “O meu sobrinho quer juntar 15 mil livros para crianças hospitalizadas.”

No início, ninguém acreditou. Quinze mil livros? Nem na biblioteca da nossa vila havia tantos! Mas Tiago não desistiu. Gravámos um vídeo dele a explicar o seu sonho:

— Olá, eu sou o Tiago e estou no hospital porque estou doente. Gosto muito de ler porque os livros me fazem esquecer as dores e as saudades de casa. Quero que todas as crianças tenham livros para ler quando estão tristes ou sozinhas.

O vídeo espalhou-se como fogo em mato seco. Pessoas de todo o país começaram a enviar livros: da Guarda ao Algarve, dos Açores a Trás-os-Montes. A sala da nossa casa ficou cheia de caixas até ao teto. Dona Rosa chorava sempre que abria uma caixa nova: “Olha este, é dos meus tempos!”

Mas nem tudo era alegria. António começou a afastar-se. Passava mais tempo no trabalho ou fechado no quarto. Uma noite ouvi-o ao telefone:

— Não aguento ver o Tiago assim… Não sei se consigo continuar.

Senti raiva e tristeza. Como podia ele desistir agora? Eu também tinha medo, mas não podia mostrar fraqueza.

No hospital, os médicos diziam-nos para aproveitarmos cada momento. O tratamento era duro e Tiago começou a perder forças. Mas sempre que recebia um novo livro, os olhos brilhavam:

— Este é para a Mariana do quarto ao lado! Ela gosta de princesas!

As enfermeiras ajudavam-nos a distribuir livros pelos outros meninos internados. Havia dias em que o corredor do hospital parecia uma biblioteca ambulante: risos, páginas a virar, histórias partilhadas em voz alta.

Um dia, Miguel trouxe más notícias:

— Alguém anda a dizer nas redes sociais que isto é tudo mentira, que estamos a usar o Tiago para ganhar dinheiro.

Fiquei furiosa. Como podiam duvidar da bondade de uma criança? Tivemos de mostrar recibos, abrir as portas da nossa casa às câmaras da televisão local. Tiago ficou triste:

— Porque é que as pessoas são más?

Abracei-o com força. — Porque têm medo do que não entendem.

O tempo passava depressa demais. Os médicos disseram-nos que talvez não chegássemos ao Natal juntos. António chorou pela primeira vez em meses:

— Desculpa… devia ter estado mais presente.

Tiago sorriu-lhe: — Pai, ajuda-me só a contar os livros?

Na véspera do Natal, atingimos os 15 mil livros. A sala do hospital encheu-se de voluntários e crianças com gorros coloridos. Tiago estava muito fraco, mas pediu para ir à janela ver as caixas serem carregadas para as carrinhas:

— Conseguimos, mãe! Agora ninguém vai ter medo à noite.

Na manhã seguinte, Tiago partiu nos meus braços. O silêncio foi ensurdecedor. António abraçou-me como nunca antes e Miguel prometeu continuar o sonho do sobrinho.

Criámos a Fundação Livros do Tiago. Todos os anos recolhemos milhares de livros para hospitais pediátricos em Portugal inteiro. Recebemos cartas de crianças e pais agradecidos; algumas dizem que foi um livro do Tiago que lhes deu esperança nos piores dias.

Às vezes pergunto-me se fiz tudo certo como mãe. Se devia ter protegido mais o meu filho ou deixado sonhar ainda mais alto. Mas quando vejo uma criança sorrir ao abrir um livro oferecido pela fundação, sinto que o Tiago continua vivo em cada página.

E vocês? O que fariam se o último desejo do vosso filho fosse mudar o mundo? Até onde iriam por um sonho tão pequeno e tão grande ao mesmo tempo?