Quando o Passado Bate à Porta: O Reencontro de Uma Vida Inteira
— Ana? — ouvi aquela voz, rouca e familiar, ecoar atrás de mim, enquanto equilibrava os sacos de compras no meio do Centro Comercial Colombo. O nome soou como um sussurro proibido, um feitiço antigo que me prendeu ao chão. Virei-me devagar, o coração a bater tão forte que temi que todos à volta o ouvissem. Era ele. Miguel. O meu Miguel de há trinta e cinco anos.
Por um segundo, tentei convencer-me de que era só alguém parecido. Mas quando os nossos olhares se cruzaram, vi tudo: o verão de 1989 em Cascais, o cheiro a maresia, as promessas sussurradas ao luar, e o beijo apressado atrás das dunas, longe dos olhos do mundo e dos meus pais.
— Miguel? — a minha voz saiu trémula, quase irreconhecível.
Ele sorriu, aquele sorriso torto que me fazia rir quando tudo parecia perdido. Mas agora, só me apetecia chorar. O tempo tinha-lhe deixado rugas nos olhos e cabelos grisalhos nas têmporas, mas era ele. O mesmo olhar intenso, a mesma presença desconcertante.
— Não posso acreditar… — murmurou ele, aproximando-se. — Estás igual.
Ri-me, nervosa. — Não exageres. O tempo não perdoa.
— Mas há coisas que não mudam — disse ele, olhando-me como se procurasse vestígios da rapariga que fui.
O silêncio entre nós era pesado. As pessoas passavam apressadas, alheias ao drama que se desenrolava ali mesmo, entre a Zara e a Bertrand. Senti-me ridícula, uma mulher de cinquenta e dois anos a tremer como uma adolescente.
— Como tens estado? — perguntou ele finalmente.
— Bem… — menti. — E tu?
— Sobrevivo — respondeu com um encolher de ombros. — Tenho dois filhos. E tu?
— Também. A Marta e o João. Já são adultos.
Ficámos ali parados, presos entre o passado e o presente, sem saber o que fazer com as mãos ou com as palavras.
— Lembras-te daquele verão? — perguntou ele baixinho.
Como poderia esquecer? O verão em que tudo mudou. Em que me apaixonei perdidamente por ele e em que a minha mãe fez questão de destruir tudo.
— Lembro — respondi, sentindo um nó na garganta.
O telemóvel vibrou no meu bolso. Era uma mensagem do Luís: “Já estás quase? O jantar está quase pronto.” Senti uma pontada de culpa. O Luís, o meu marido há vinte e oito anos, sempre tão previsível, tão seguro… tão diferente do Miguel.
— Tenho de ir — disse apressada. — O meu marido está à espera.
Miguel assentiu, mas antes que eu me afastasse, segurou-me no braço.
— Ana… — hesitou. — Desculpa tudo o que aconteceu naquela altura. Nunca tive coragem de te procurar depois…
Fechei os olhos por um instante. Vi a minha mãe a fechar a porta na cara dele, a dizer-me que ele não era para mim, que eu merecia mais do que um rapaz sem futuro. Vi-me a chorar noites inteiras, a prometer nunca mais amar ninguém assim. Mas amei. Ou pelo menos tentei.
— Não foste só tu — sussurrei. — Eu também tive medo.
Ele sorriu tristemente. — Achas que teria sido diferente se tivéssemos lutado?
Não respondi. Como responder a isso? A vida não é feita de “ses”. Ou talvez seja.
— Adeus, Miguel — disse finalmente.
Afastei-me apressada, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. No carro, antes de arrancar, olhei-me ao espelho retrovisor. Vi uma mulher cansada, mas também vi a rapariga de há trinta e cinco anos, cheia de sonhos e medos.
O jantar em casa foi silencioso. O Luís percebeu logo que algo não estava bem.
— Passou-se alguma coisa? — perguntou ele enquanto arrumava os pratos.
— Não… só estou cansada — menti outra vez.
À noite, na cama ao lado dele, dei por mim a pensar no Miguel. No que teria sido se tivéssemos tido coragem de enfrentar tudo e todos. Se não tivéssemos deixado que os outros decidissem por nós.
Os dias seguintes foram uma tortura silenciosa. Cada vez que passava pelo centro comercial, sentia o coração apertar-se na esperança (ou medo?) de o voltar a ver. Comecei a sonhar com ele à noite: voltávamos à praia de Cascais, ríamos como antes, sem preocupações nem obrigações.
Uma semana depois, recebi uma mensagem desconhecida: “Podemos conversar? Só mais uma vez.” Hesitei durante horas antes de responder: “Amanhã às 18h no Jardim da Estrela.” Senti-me ridícula e excitada ao mesmo tempo.
No jardim, ele já lá estava sentado num banco à sombra das árvores. Parecia mais velho do que na semana anterior, ou talvez fosse só o peso da conversa por vir.
— Obrigado por vires — disse ele assim que me aproximei.
Sentei-me ao lado dele sem saber onde pôr as mãos.
— Preciso de te dizer uma coisa que guardei durante todos estes anos — começou ele, olhando para as mãos entrelaçadas. — Quando a tua mãe me proibiu de te ver… eu tentei lutar. Mas ela ameaçou contar ao meu pai sobre o dinheiro que eu tinha roubado para te levar àquele concerto em Lisboa. Eu tinha vergonha… não queria que soubesses disso.
Fiquei em silêncio, chocada. Nunca soube desse segredo sujo do nosso passado.
— Porque nunca me disseste? — perguntei finalmente.
Ele encolheu os ombros. — Tinha medo de te perder ainda mais rápido se soubesses quem eu realmente era.
Olhei para ele com outros olhos. Afinal, todos temos segredos e vergonhas escondidas no fundo da alma.
— E agora? O que queres de mim? — perguntei baixinho.
Ele sorriu tristemente. — Só queria pedir-te perdão… e saber se alguma vez me perdoaste por ter desaparecido assim.
Senti as lágrimas escorrerem-me pelo rosto sem conseguir controlar.
— Perdoei-te há muito tempo… mas nunca consegui perdoar-me por não ter lutado por nós.
Ficámos ali sentados em silêncio até o sol começar a pôr-se sobre Lisboa. Quando me levantei para ir embora, senti um peso sair-me dos ombros e outro instalar-se no peito: o peso das escolhas feitas e das vidas não vividas.
Em casa, olhei para o Luís e para os meus filhos com outros olhos. A vida é feita de escolhas difíceis e nem sempre acertamos à primeira ou à segunda tentativa.
Agora pergunto-me: quantos de nós vivem com fantasmas do passado? Quantos segredos guardamos por medo ou vergonha? E será possível recomeçar depois de tanto tempo?