Entre o Passado e o Futuro: O Peso das Decisões de um Pai
— Não, pai, não podes entrar. — A minha voz saiu mais firme do que eu esperava, mas as mãos tremiam-me enquanto segurava a porta. O meu sogro, António, olhava-me com aqueles olhos frios que tantas vezes vi a minha mulher evitar. Atrás de mim, os gémeos brincavam no tapete da sala, alheios à tempestade que se formava à porta.
— És mesmo um ingrato, Miguel. Depois de tudo o que fiz pela minha filha… — A voz dele era um trovão abafado, carregado de mágoa e raiva contida.
Fechei os olhos por um segundo. A imagem da Sofia, a minha mulher, apareceu-me nítida: o sorriso cansado, os olhos sempre atentos aos meninos, mas também sempre em alerta quando o pai estava por perto. Ela nunca me contou tudo, mas contou-me o suficiente. E agora ela já cá não estava para me ajudar a decidir.
A Sofia morreu há três meses. Um acidente estúpido de carro numa manhã de chuva. Desde então, tenho vivido num nevoeiro de dor e responsabilidade. Os gémeos, o Tiago e o Tomás, têm apenas cinco anos. Perguntam pela mãe todos os dias. E agora perguntam pelo avô.
— O avô António vai vir brincar connosco hoje? — perguntou-me o Tiago ontem, com aqueles olhos grandes e inocentes.
Como é que se explica a uma criança que há pessoas na família que não são seguras? Como é que se protege sem criar fantasmas?
A minha sogra morreu cedo, e a Sofia cresceu sozinha com o pai. Ela contou-me histórias de gritos, portas batidas, castigos sem razão. Uma vez, quando namorávamos ainda, vi-lhe uma cicatriz no braço. Ela disse que tinha sido um acidente na cozinha, mas os olhos dela disseram-me outra coisa.
Quando a Sofia engravidou dos gémeos, ela afastou-se do pai durante meses. Só voltou a falar-lhe quando ele ficou doente e precisou de ajuda. Mas nunca deixou os meninos sozinhos com ele.
Agora, com ela morta, António apareceu mais vezes do que nunca. No funeral, chorou alto, abraçou os netos com força demais. Depois começou a ligar todos os dias: queria vê-los, queria levá-los ao parque, queria ser o avô presente que nunca foi pai.
A minha mãe diz-me que estou a ser cruel.
— Ele perdeu a filha, Miguel! Não podes tirar-lhe também os netos! — gritou-me ao telefone na semana passada.
Mas eu lembro-me da Sofia a tremer quando ouvia o pai subir as escadas do prédio. Lembro-me das noites em que ela acordava sobressaltada com pesadelos do passado. Lembro-me do medo dela.
Hoje foi longe demais. António apareceu sem avisar. Tocou à campainha e entrou logo no prédio quando uma vizinha saiu. Quando abri a porta, já estava no corredor.
— Quero ver os meus netos — disse ele, sem rodeios.
— Não posso deixar — respondi eu.
— És um cobarde — cuspiu ele. — A Sofia nunca te perdoaria!
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Como se ele tivesse direito de falar em nome dela! Como se ele não tivesse sido o motivo de tantas lágrimas dela!
— A Sofia confiava em mim para proteger os meninos — disse-lhe eu, baixinho.
Ele olhou-me como se eu fosse um estranho. Depois virou costas e desceu as escadas aos tropeções.
Fechei a porta e encostei-me à madeira fria. O Tiago veio ter comigo com um carrinho na mão.
— O avô está triste? — perguntou.
Ajoelhei-me ao lado dele e abracei-o com força.
— O avô precisa de tempo — menti.
À noite, depois de deitar os meninos, sentei-me à mesa da cozinha com um copo de vinho barato. Liguei à minha cunhada, a irmã da Sofia.
— Achas que estou a exagerar? — perguntei-lhe.
Ela suspirou do outro lado da linha.
— O meu pai nunca mudou, Miguel. Eu não deixava os meus filhos sozinhos com ele nem por um minuto. Mas… também não sei se conseguiria cortar-lhe o contacto para sempre. Ele está velho… está sozinho…
Ficámos em silêncio durante muito tempo.
No dia seguinte, recebi uma mensagem da minha mãe: “O António foi ter contigo? Ele ligou-me a chorar. Diz que tu és cruel.”
Senti-me esmagado entre dois mundos: o dever de proteger os meus filhos e o peso da culpa por afastar um homem velho e sozinho dos únicos netos.
O Tiago e o Tomás começaram a perguntar menos pelo avô. Mas às vezes vejo-os desenhar três adultos nas folhas da escola: eu, eles e uma figura grande com óculos — o avô António.
Uma noite sonhei com a Sofia. Ela estava sentada na nossa cama, penteava o cabelo dos meninos e sorria para mim. Quando tentei falar-lhe sobre o pai dela, ela apenas abanou a cabeça e disse: “Protege-os como eu te pedi”.
Acordei com lágrimas nos olhos e uma sensação de paz misturada com dúvida.
No domingo seguinte, fui ao cemitério levar flores à Sofia com os meninos. No caminho de volta, cruzei-me com o António à porta do prédio. Ele olhou para mim como se quisesse dizer alguma coisa, mas ficou calado.
Os meninos correram para ele e abraçaram-no pelas pernas antes que eu pudesse reagir. Ele ficou imóvel por uns segundos e depois pousou as mãos nas cabeças deles — hesitante, quase assustado.
— Olá, avô — disse o Tomás.
António olhou para mim por cima das cabeças deles. Vi nos olhos dele uma tristeza funda — ou talvez fosse só cansaço.
— Posso dar-lhes um chocolate? — perguntou-me ele num sussurro quase infantil.
Assenti devagar. Ele tirou dois bombons do bolso e deu-lhes aos meninos. Depois afastou-se sem dizer mais nada.
Nessa noite fiquei horas acordado a pensar: será que estou a ser demasiado duro? Será que as pessoas mudam mesmo? Ou será que há feridas que nunca saram?
Os dias passaram e António deixou de aparecer à porta. Mandava postais aos meninos pelo correio: desenhos toscos de barcos e aviões com mensagens simples: “Do avô António”.
A família continuou dividida: uns achavam que eu era um herói por proteger os meus filhos; outros diziam que eu era cruel por negar-lhes uma família mais alargada.
Eu só sei que cada decisão pesa como chumbo no peito. Não há respostas fáceis quando se trata do passado e da segurança dos nossos filhos.
Às vezes pergunto-me: será possível perdoar sem esquecer? Será possível proteger sem isolar? E vocês… o que fariam no meu lugar?