Quando o Meu Pai Sorriu Outra Vez: Entre a Felicidade Dele e a Dor da Minha Mãe

— Não vás já, por favor… — ouvi a voz da minha mãe, quase um sussurro, enquanto o meu pai pegava nas chaves do carro. O relógio da cozinha marcava 20h17, e o arroz de pato arrefecia na travessa. Eu tinha 14 anos e sentia-me pequeno, esmagado entre dois mundos que já não se tocavam.

O meu pai olhou para mim, depois para ela. — Preciso de apanhar ar, Teresa. Não consigo respirar aqui dentro. — E saiu, batendo a porta com força suficiente para fazer tremer os copos na prateleira.

A minha mãe ficou sentada à mesa, os olhos perdidos no vazio. Eu queria dizer qualquer coisa, mas as palavras não saíam. O silêncio era tão pesado que quase me sufocava. Lembro-me de pensar: “Será que isto é culpa do pai? Ou será que a mãe já estava triste antes?”

Na escola, os meus colegas falavam de férias, de namoradas, de futebol. Eu só pensava em como era chegar a casa e encontrar a minha mãe deitada no sofá, as persianas fechadas, o televisor ligado num volume baixo. O cheiro a café frio e a roupa por passar a ferro misturava-se com o som abafado dos seus soluços. Às vezes, ela nem me ouvia entrar.

Uma noite, acordei com barulho na cozinha. Fui espreitar e vi o meu pai ao telefone, a rir-se baixinho. — Sim, amanhã levo-te à praia da Nazaré… Não te esqueças do casaco! — disse ele, com uma voz que eu já não ouvia há anos. Quando me viu, ficou sério. — Vai dormir, Afonso.

Afonso. O nome que ele escolheu para mim porque era o nome do avô dele. Mas ultimamente parecia que ele se esquecia de quem eu era.

No dia seguinte, tentei falar com a minha mãe. — Mãe, porque é que o pai já não fica connosco?

Ela olhou para mim como se me visse pela primeira vez. — Porque às vezes as pessoas cansam-se umas das outras, filho. E eu cansei-me de mim própria.

Essas palavras ficaram-me gravadas. “Cansei-me de mim própria.” Como é que alguém se cansa de si mesmo? Comecei a reparar nos detalhes: as olheiras fundas da minha mãe, as roupas largas, o cabelo apanhado à pressa. O telefone tocava e ela não atendia. As amigas deixaram de aparecer.

O meu pai começou a vir cada vez menos a casa. Quando vinha, trazia sempre um saco com roupa lavada e um cheiro diferente — perfume feminino misturado com o dele. Um dia, trouxe uma caixa de pastéis de nata e tentou animar-nos.

— Olha, Afonso, trouxe-te os teus favoritos!

A minha mãe nem olhou para ele. Eu comi um pastel só para não parecer ingrato, mas soube-me a nada.

As discussões começaram a ser mais frequentes. — Tu nunca estiveste cá! — gritava a minha mãe.

— Eu tentei! Mas tu fechaste-te no teu mundo! — respondia ele.

Eu tapava os ouvidos no quarto, mas ouvia tudo. Um dia, atirei um caderno contra a parede e chorei até adormecer.

Na escola, comecei a faltar às aulas. A professora Margarida chamou-me à parte:

— Afonso, está tudo bem em casa?

Quis dizer-lhe tudo: que tinha medo que a minha mãe não acordasse um dia; que odiava o sorriso novo do meu pai; que sentia falta de quando éramos só nós três no parque da cidade aos domingos. Mas só consegui encolher os ombros.

O tempo passou e o meu pai apresentou-nos à Ana. Ela era simpática demais, falava alto e ria-se das minhas piadas sem graça. O meu pai parecia outro ao lado dela: mais leve, mais jovem.

— Afonso, gostavas de ir ao Oceanário com a Ana e comigo este fim-de-semana?

Olhei para ele como se me tivesse pedido para trair a minha mãe.

— Não posso. Tenho trabalhos para fazer.

Ele suspirou e saiu do quarto. Fiquei ali sentado, com raiva dele e de mim próprio por sentir saudades dos tempos em que ele ainda tentava.

A minha mãe afundou-se ainda mais na tristeza. Começou a tomar comprimidos para dormir e passava horas sem sair da cama. Um dia, encontrei-a sentada no chão da casa de banho, a chorar baixinho.

— Mãe…

Ela abraçou-me com força e murmurou: — Desculpa, filho… Desculpa não ser suficiente.

Nessa noite escrevi no meu diário: “Será que o pai tem razão? Será que ela não quer mesmo ser feliz? Ou será que ele podia ter tentado mais?”

Os meses passaram assim: eu entre duas casas, dois mundos opostos. O meu pai tentava convencer-me de que podia ser feliz com ele e com a Ana; a minha mãe tentava convencer-se de que ainda valia alguma coisa.

No Natal desse ano, jantámos todos juntos pela última vez. A mesa estava posta como antigamente, mas ninguém sabia o que dizer. O meu pai levantou-se primeiro:

— Teresa… Afonso… Eu vou embora amanhã. Vou viver com a Ana em Lisboa.

A minha mãe não chorou nem gritou. Só disse: — Faz o que quiseres.

Eu fui atrás dele quando saiu para fumar no quintal.

— Pai… É culpa tua?

Ele olhou-me nos olhos como nunca antes:

— Não sei, filho. Às vezes acho que sim. Outras vezes acho que só queria voltar a sentir-me vivo.

Fiquei ali parado enquanto ele fumava em silêncio.

Depois disso, tudo mudou depressa demais. O meu pai ligava-me todos os domingos; a Ana mandava mensagens simpáticas; eu respondia por obrigação. A minha mãe começou terapia — devagarinho foi voltando à vida: cortou o cabelo curto, arranjou um trabalho numa loja do bairro.

Um dia cheguei a casa e encontrei-a na cozinha a ouvir fado e a dançar sozinha.

— Estás bem? — perguntei.

Ela sorriu pela primeira vez em muito tempo:

— Estou melhor do que ontem.

Nesse momento percebi que talvez ninguém tivesse culpa de nada. Que as pessoas mudam, cansam-se ou apaixonam-se outra vez — e que isso dói muito mais em quem fica para trás do que em quem parte.

Hoje tenho 19 anos e vivo sozinho no Porto. O meu pai casou com a Ana; a minha mãe tem um namorado novo chamado Rui e já não toma comprimidos para dormir. Às vezes jantamos todos juntos — estranhamente felizes na nossa imperfeição.

Mas ainda me pergunto: será mesmo possível perdoar sem esquecer? Ou será que carregamos sempre connosco as dores antigas das escolhas dos nossos pais?