Viver com o Meu Pai Nunca Foi Fácil: Ele Queria que Eu Fosse o Filho Perfeito
— Não é assim que se faz, Miguel! — gritou o meu pai, batendo com a mão na mesa da cozinha. O som ecoou pela casa pequena em Almada, fazendo-me estremecer. Eu tinha acabado de chegar da escola, ainda com a mochila às costas, e já sentia o peso do mundo sobre mim. Tinha 12 anos e, naquele momento, só queria desaparecer.
O meu pai sempre foi um homem de poucas palavras e muitos silêncios pesados. Depois do divórcio com a minha mãe, quando eu tinha apenas três anos, ficou comigo por decisão do tribunal. Diziam que era para me dar estabilidade, mas nunca percebi como é que estabilidade podia ser sinónimo de tensão constante.
— Desculpa, pai — murmurei, tentando esconder as lágrimas que ameaçavam cair. Ele olhou para mim com aquele olhar duro, como se esperasse que eu fosse feito de ferro.
— Desculpa não chega. Tens de aprender a fazer as coisas bem feitas. Não quero um filho medíocre nesta casa.
Essas palavras ficaram a ecoar na minha cabeça durante anos. Cresci a tentar ser o filho perfeito: notas altas, comportamento exemplar, sempre pronto a ajudar em casa. Mas nada parecia suficiente. O meu pai queria que eu fosse como ele: forte, decidido, sem espaço para fraquezas.
Lembro-me de uma noite em particular, quando tinha 15 anos. Estava sentado no meu quarto, a estudar para um teste de Matemática. O meu pai entrou sem bater à porta.
— Já acabaste os exercícios? — perguntou, sem sequer olhar para mim.
— Ainda não, estou com dificuldades neste problema — respondi, apontando para o caderno.
Ele aproximou-se e olhou para o exercício. — Isto é fácil. Não percebo como é que não consegues resolver uma coisa tão simples. — Pegou no lápis e resolveu o problema em segundos. — Vês? É só pensar um bocado.
Senti-me pequeno, inútil. Não era só a Matemática; era tudo. Nunca conseguia corresponder ao que ele esperava de mim.
Aos fins de semana, íamos ao café do senhor António, onde o meu pai jogava dominó com os amigos. Eu ficava sentado ao lado dele, calado, enquanto ouvia as conversas sobre futebol e política. Às vezes, algum dos amigos perguntava por mim:
— Então Miguel, já sabes o que queres ser quando fores grande?
Antes que eu pudesse responder, o meu pai respondia por mim:
— Vai ser engenheiro, como deve ser! Não quero cá artistas nem sonhadores nesta família.
Eu sorria amarelo, mas por dentro sentia uma revolta a crescer. Sempre gostei de desenhar. Passava horas a criar personagens e mundos imaginários nos meus cadernos escondidos. Mas nunca tive coragem de mostrar ao meu pai. Sabia que ele ia rir-se ou, pior ainda, ignorar completamente.
A relação com a minha mãe era distante. Ela vivia em Setúbal com o novo marido e raramente me visitava. Quando falávamos ao telefone, as conversas eram curtas e cheias de silêncios constrangedores.
— Estás bem? — perguntava ela.
— Sim… — respondia eu, sem saber o que mais dizer.
— O teu pai trata-te bem?
— Trata…
Nunca tive coragem de lhe contar como me sentia realmente. Não queria preocupar ninguém. Achava que era mais fácil assim.
O tempo foi passando e as expectativas do meu pai só aumentavam. Quando fiz 17 anos e chegou a altura de escolher o curso para a universidade, ele já tinha tudo planeado.
— Vais para Engenharia no Técnico em Lisboa — disse ele numa noite fria de janeiro. — Já tratei da papelada toda. Só tens de estudar e entrar.
— Mas pai… eu gostava mesmo era de Artes Plásticas…
Ele levantou-se da cadeira tão depressa que quase a derrubou.
— Artes Plásticas? Vais morrer à fome! Não criei um filho para ser artista de rua! — gritou ele, com os olhos cheios de raiva e desilusão.
Nesse momento percebi que nunca seria suficiente para ele se seguisse o meu próprio caminho. Senti uma dor profunda no peito, como se estivesse a trair alguém só por querer ser eu mesmo.
Acabei por entrar em Engenharia, como ele queria. Os primeiros meses foram um inferno. Não conseguia concentrar-me nas aulas, sentia-me deslocado entre colegas que pareciam saber exatamente o que queriam da vida. Eu só queria desenhar.
Comecei a faltar às aulas para ir ao Jardim da Estrela desenhar pessoas desconhecidas. Era ali que me sentia livre pela primeira vez em anos. Mas cada vez que chegava a casa e via o olhar do meu pai, sentia-me culpado.
Um dia ele descobriu os meus cadernos de desenhos escondidos na gaveta da secretária.
— O que é isto? — perguntou ele, segurando os cadernos como se fossem provas de um crime.
— São só desenhos…
— Só desenhos? Achas que isto te vai dar futuro? — atirou os cadernos para cima da mesa com desprezo. — Enquanto viveres nesta casa vais fazer o que eu mando!
Nessa noite não consegui dormir. Senti-me sufocado, preso numa vida que não era minha. Comecei a pensar em fugir, em deixar tudo para trás e recomeçar do zero.
A gota de água foi quando chumbei a uma cadeira importante no segundo semestre. O meu pai ficou furioso.
— És uma vergonha! Depois de tudo o que fiz por ti! — gritou ele, atirando um copo contra a parede da cozinha.
Nesse momento percebi que não podia continuar assim. Arrumei algumas roupas numa mochila e fui dormir para casa do meu amigo Rui durante uns dias. Liguei à minha mãe e contei-lhe tudo pela primeira vez.
Ela veio buscar-me no dia seguinte e levei comigo apenas os meus cadernos de desenhos e um par de sapatos velhos.
Os meses seguintes foram difíceis. A minha mãe tentou ajudar-me a recomeçar em Setúbal, mas eu sentia-me perdido. Comecei a trabalhar num café para pagar as despesas e inscrevi-me num curso noturno de Desenho na escola secundária local.
O meu pai deixou de falar comigo durante quase dois anos. Recebia apenas mensagens secas no Natal ou nos meus aniversários: “Espero que estejas bem” ou “Parabéns” — nada mais.
Apesar disso, comecei finalmente a sentir-me livre para ser quem sou. Fiz novos amigos no curso de Desenho e até participei numa exposição coletiva na Casa da Cultura de Setúbal. Pela primeira vez na vida ouvi alguém dizer:
— Tens muito talento, Miguel! Devias continuar!
Essas palavras foram como bálsamo para as feridas antigas deixadas pelo meu pai.
Com o tempo fui reconstruindo a relação com ele aos poucos. Um dia apareceu na exposição sem avisar. Ficou parado à porta durante uns minutos antes de se aproximar dos meus quadros.
— Não sabia que eras capaz disto… — disse ele baixinho, quase envergonhado.
Olhei para ele sem saber o que responder. Pela primeira vez vi fragilidade nos seus olhos.
Hoje tenho 28 anos e vivo sozinho num pequeno apartamento em Lisboa. Trabalho como ilustrador freelancer e dou aulas de desenho a crianças num centro cultural do bairro da Graça. Ainda falo com o meu pai de vez em quando; nunca fomos próximos como eu sonhei, mas aprendi a aceitar as nossas diferenças.
Às vezes pergunto-me: quantos filhos vivem presos às expectativas dos pais sem nunca terem coragem de ser quem realmente são? E quantos pais percebem tarde demais o quanto isso pode magoar? Talvez nunca haja respostas certas… Mas será que vale mesmo a pena sacrificar os nossos sonhos só para agradar aos outros?