O Apetite Insaciável do António: Entre o Amor e o Frigorífico Trancado
— Outra vez, António? — gritei da cozinha, sentindo o frio do frigorífico aberto invadir-me os pés descalços. — São três da manhã!
Ele olhou para mim com aquele ar de miúdo apanhado em flagrante, uma fatia de queijo meio mastigada na boca. — Não consegui dormir, Marta. O estômago não me deixa em paz.
Fechei os olhos, tentando controlar a raiva e o cansaço. Já não era a primeira vez. Desde que o António ficou desempregado, há seis meses, que as noites se tornaram um desfile de idas furtivas ao frigorífico. O silêncio da casa era interrompido pelo som do plástico das embalagens, das gavetas a deslizar, do micro-ondas a apitar baixinho.
— Sabes que temos de poupar, não sabes? — sussurrei, tentando não acordar a nossa filha, Leonor, que dormia no quarto ao lado.
Ele encolheu os ombros, olhos baixos. — Eu sei, Marta. Mas não consigo evitar. Sinto-me vazio…
Vazio. Não era só o estômago dele que estava assim. O vazio tinha-se instalado entre nós, silencioso e pesado como uma nuvem de tempestade. Antes, António era o pilar da casa: trabalhador, brincalhão, sempre com uma solução para tudo. Agora, passava os dias no sofá, a ver televisão ou a enviar currículos que nunca eram respondidos.
A comida tornou-se o seu refúgio. E eu… eu sentia-me cada vez mais sozinha nesta luta.
Na manhã seguinte, acordei com o cheiro a torradas queimadas. Entrei na cozinha e vi António a tentar raspar o carvão de uma fatia de pão.
— Não era preciso fazeres isso — disse-lhe, tentando soar menos amarga do que me sentia.
Ele sorriu, mas o sorriso não lhe chegou aos olhos. — Queria surpreender-te com o pequeno-almoço.
Sentei-me à mesa e olhei para ele. O cabelo despenteado, a barba por fazer, as olheiras fundas. Era difícil reconhecer o homem por quem me tinha apaixonado há dez anos atrás.
— António… precisamos de falar.
Ele largou a faca e ficou à espera.
— Não podemos continuar assim. As contas estão atrasadas, a Leonor precisa de roupa nova para a escola… e tu… tu tens de reagir!
Ele levantou-se bruscamente, a cadeira arrastando-se no chão com um estrondo. — Achas que não sei disso? Achas que não me sinto um inútil todos os dias?
A Leonor apareceu à porta da cozinha, esfregando os olhos. — Mãe… pai… estão a discutir?
Corri para ela e abracei-a. — Não, querida. Só estamos a conversar alto.
Mas ela sabia. As crianças sentem tudo.
Nesse dia, fui trabalhar com um peso no peito. No escritório, mal consegui concentrar-me. A minha colega Inês percebeu logo.
— Está tudo bem em casa? — perguntou ela, baixinho.
Desatei a chorar ali mesmo, entre pilhas de papéis e e-mails por responder.
— O António está diferente… eu já não sei como ajudá-lo. E ele come tudo o que encontra! Já pensei em trancar o frigorífico…
A Inês sorriu com ternura. — Às vezes eles precisam de um empurrãozinho. Mas também tens de cuidar de ti.
Voltei para casa mais tarde do que o costume. Encontrei António sentado à mesa da cozinha, com uma folha de papel à frente.
— O que é isso? — perguntei.
— Fiz uma lista de empregos para onde posso ligar amanhã — respondeu ele, sem me olhar nos olhos.
Sentei-me ao lado dele e toquei-lhe na mão. — Eu só quero que voltes a ser feliz…
Ele suspirou. — Eu também quero, Marta. Mas é difícil… sinto-me tão perdido.
Naquela noite, depois de adormecer a Leonor, sentei-me sozinha na sala e olhei para o frigorífico branco e silencioso. Lembrei-me das noites felizes em que cozinhávamos juntos, ríamos das nossas asneiras culinárias e sonhávamos com viagens que nunca fizemos.
Agora, tudo parecia distante.
No fim-de-semana seguinte, decidi agir. Fui ao supermercado sozinha e comprei um pequeno cadeado para o frigorífico. Quando cheguei a casa, António estava no sofá com Leonor ao colo, ambos a ver desenhos animados.
— O que é isso? — perguntou ele quando me viu instalar o cadeado.
— É só até as coisas melhorarem — expliquei, sentindo-me horrível por dentro. — Não podemos continuar assim.
Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Depois levantou-se e saiu de casa sem dizer palavra.
Leonor olhou para mim com os olhos muito abertos. — A culpa é minha?
Abracei-a com força. — Não, meu amor. Nunca seria tua culpa.
António voltou tarde nessa noite. Trazia consigo um saco de pão quente e um olhar diferente.
— Fui dar uma volta — disse ele simplesmente. — Pensei muito no que disseste…
Sentámo-nos à mesa e partilhámos o pão em silêncio. Pela primeira vez em meses, senti uma réstia de esperança.
Nos dias seguintes, António começou a sair mais vezes de casa durante o dia. Voltava cansado mas animado: tinha ido entregar currículos em cafés, supermercados e até numa oficina perto do bairro.
Uma tarde chegou a casa com um sorriso genuíno nos lábios.
— Marta! Conseguiram-me uma entrevista para amanhã!
Abraçámo-nos na cozinha, junto ao frigorífico trancado.
A entrevista correu bem e António começou a trabalhar numa pastelaria local. O salário era modesto mas suficiente para aliviar as contas e devolver-lhe alguma dignidade.
Com o tempo, fui retirando o cadeado do frigorífico. Voltámos a cozinhar juntos ao fim-de-semana e até inventámos receitas novas para poupar dinheiro sem abdicar do sabor.
Mas as cicatrizes ficaram: ainda hoje acordo sobressaltada quando ouço passos na cozinha durante a noite; ainda me pergunto se fiz bem em impor limites tão duros; ainda temo que tudo volte atrás ao mínimo deslize da vida.
No entanto, aprendi que o amor não se mede pelo número de refeições partilhadas ou pelas contas pagas a tempo: mede-se pela capacidade de resistir às tempestades juntos — mesmo quando parece mais fácil trancar tudo atrás de uma porta fechada.
E vocês? Já sentiram que precisavam de fechar algo à chave para proteger quem amam? Ou será que há portas que nunca deviam ser trancadas?