Entre Silêncios e Gritos: A Solidão de Maria

— Ana, desculpa, mas podias ajudar-me a encontrar os óculos? — perguntei, com a voz trémula, enquanto ela passava apressada pelo corredor.

Ela suspirou, sem sequer me olhar nos olhos. — Mãe, estão sempre a desaparecer. Já viste na sala?

O som dos seus passos afastando-se ecoou mais alto do que as palavras. Fiquei ali, sentada na ponta da cama, com as mãos a tremer. Senti-me pequena, invisível. O relógio da parede marcava 18h12. Lá fora, o céu de Lisboa tingia-se de laranja, mas dentro de mim tudo era cinzento.

Quando o meu António morreu, há três anos, pensei que a dor nunca passaria. Mas passou. Ou melhor, transformou-se noutra coisa: uma ausência constante, um silêncio pesado que se instalou nesta casa onde agora vivo com a Ana e o Rui, o meu genro. Eles acolheram-me porque “não fazia sentido uma mulher da minha idade ficar sozinha”, disseram. Mas será que faz sentido viver assim?

A Ana mudou muito desde que casei com o Rui. Sempre foi uma filha dedicada, mas agora parece que tudo o que faço a irrita. Sinto-me um estorvo. Tento não pedir nada, mas há dias em que até levantar-me custa. O corpo já não responde como antes. As mãos doem-me, as pernas fraquejam. E quando preciso de ajuda, vejo nos olhos dela um cansaço que me corta a alma.

— Mãe, tens de ser mais independente — disse-me ela há uns meses, depois de uma discussão porque deixei cair um copo no chão da cozinha.

— Eu tento, filha… — respondi, com lágrimas nos olhos.

Ela virou costas. Fiquei ali a olhar para os cacos espalhados no chão frio. Lembrei-me dos tempos em que era eu quem limpava tudo, quem cuidava dela quando tinha febre ou pesadelos. Agora sou eu quem precisa de colo.

O Rui é mais distante. Cumprimenta-me de manhã e à noite, mas raramente me dirige a palavra. Sei que não gosta de ter uma sogra em casa. Ouço-o às vezes a falar com a Ana na cozinha:

— Isto não pode continuar assim. A tua mãe precisa de cuidados que nós não conseguimos dar.

— Eu sei, Rui… mas não consigo deixá-la sozinha — responde ela, num sussurro.

Finjo que não ouço. Mas cada palavra é uma punhalada.

Os meus dias são todos iguais. Acordo cedo porque já não consigo dormir muito tempo seguido. Faço o meu café com leite e sento-me à janela a ver os vizinhos passarem. Às vezes penso em sair para dar uma volta ao bairro, mas tenho medo de cair ou perder-me. O mundo parece tão grande agora…

Tenho saudades dos tempos em que a casa estava cheia: risos das crianças, cheiro a sopa acabada de fazer, música do rádio antigo do António. Agora só há silêncio e o tique-taque do relógio.

A Ana trabalha muito. Chega tarde e quase sempre cansada. Tento não incomodar, mas às vezes preciso de conversar. Contar-lhe sobre os sonhos estranhos que tenho tido ou sobre as dores novas que aparecem todos os dias.

— Mãe, agora não posso — diz ela quase sempre.

Sinto-me cada vez mais sozinha. Os amigos foram partindo um a um. A Dona Emília do terceiro andar morreu há dois meses; o Sr. Joaquim já nem sai à rua. Restam-me as memórias e as fotografias antigas guardadas numa caixa de sapatos.

No outro dia tentei ligar à minha irmã Rosa, mas ela também está doente e mal consegue falar ao telefone.

Às vezes penso: será que sou mesmo um peso? Será que seria melhor ir para um lar? Mas só de imaginar fico com o coração apertado. Não quero acabar os meus dias rodeada de estranhos, longe da minha filha.

Na semana passada houve uma discussão feia cá em casa. O Rui perdeu a paciência porque deixei o fogão ligado sem querer.

— Isto é perigoso! — gritou ele. — Qualquer dia acontece uma desgraça!

A Ana chorou nesse dia. Eu também chorei, mas escondida no quarto para não a preocupar mais.

Depois disso comecei a pensar mais vezes em desaparecer. Não no sentido literal — nunca fui mulher de desistir — mas desaparecer no sentido de não incomodar mais ninguém. Ficar quieta no meu canto até já não fazer falta.

Mas depois lembro-me dos olhos da Ana quando era pequena, do seu sorriso quando me trazia desenhos feitos na escola: “Para a melhor mãe do mundo”.

Será que ainda sou essa mãe?

Hoje tentei falar com ela sobre como me sinto.

— Ana, posso falar contigo um bocadinho?

Ela olhou para mim com pressa nos olhos.

— Diz, mãe…

— Sinto-me muito sozinha aqui… Tenho medo de estar a ser um peso para ti e para o Rui.

Ela ficou calada durante uns segundos longos demais.

— Mãe… eu faço o que posso. Mas também tenho a minha vida… Não é fácil para ninguém.

Senti um nó na garganta.

— Eu sei, filha… Só queria sentir que ainda faço parte da tua vida.

Ela suspirou e saiu da sala sem dizer mais nada.

Fiquei ali sentada no sofá, a olhar para as mãos enrugadas no colo. O silêncio voltou a encher a casa.

À noite escrevi uma carta à Ana — nunca tive coragem de lha entregar:

“Filha,
Se algum dia leres isto, quero que saibas que nunca quis ser um peso para ti. Tudo o que fiz foi por amor. Sei que agora sou eu quem precisa de ti e isso custa-me mais do que possas imaginar. Perdoa-me se te roubo tempo ou alegria. Amo-te sempre.
Mãe”

Guardei a carta na gaveta da mesa-de-cabeceira.

Hoje escrevo aqui porque preciso de desabafar com alguém — mesmo que seja com desconhecidos deste lado do ecrã. Como é envelhecer assim? Como se aprende a aceitar esta solidão? Será possível voltar a sentir-se útil e amada depois dos 70?

Às vezes pergunto-me: será que há outras Marias como eu? Será que algum dia vou voltar a sentir-me parte do mundo?