Depois da Morte do António: Entre o Silêncio e a Casa da Filha

— Mãe, não podes continuar assim. — A voz da Inês ecoou pela sala, cortando o silêncio pesado que se instalara desde o funeral do António. Eu estava sentada na poltrona dele, a mesma onde ele adormecia todos os domingos à tarde, com o jornal pousado no peito. Olhei para ela, os olhos marejados, mas sem lágrimas. Já não chorava. Agora era só um vazio, uma ausência que me engolia devagar.

— Assim como, filha? — perguntei, tentando que a voz não me tremesse.

— Sozinha nesta casa enorme. Não comes, não sais, não falas com ninguém. O pai não ia querer ver-te assim.

A Inês tinha razão. Mas ela não sabia — ninguém sabia — que eu não temia a solidão. Temia, sim, a proximidade. O medo de me tornar um peso, de invadir a vida dela e do Rui, de ser aquela sogra de quem todos falam baixinho nas festas de família.

— Vem viver connosco, mãe. O Martim sente a tua falta. — O Martim, o meu neto de oito anos, era o único raio de sol nos meus dias cinzentos. Mas será que bastava?

Naquela noite, deitei-me na cama vazia e ouvi o eco do António na casa: os passos no corredor, o assobio desafinado quando lavava os dentes. Senti-me pequena, perdida. Lembrei-me da última vez que discutimos — por causa do sal na sopa — e desejei poder voltar atrás só para lhe pedir desculpa.

Aceitei o convite da Inês uma semana depois. Não foi coragem; foi cansaço. Cansaço de lutar contra as memórias e contra o silêncio.

A mudança foi um caos de caixas e recordações. A Inês queria levar tudo: fotografias, livros, até as chávenas lascadas do serviço de casamento. Eu queria deixar tudo para trás, como se assim pudesse aliviar o peso do passado.

— Mãe, isto é importante para ti! — insistia ela, segurando uma moldura com a nossa foto na praia da Nazaré.

— Não é a mesma coisa sem ele — respondi, afastando-me.

A casa da Inês era moderna, cheia de luz e barulho. O Martim corria pelos corredores com os carrinhos de brincar; o Rui trabalhava ao computador na sala; a Inês gritava da cozinha para eu ir provar o arroz de pato.

No início, sentia-me uma intrusa. Não sabia onde pôr as minhas coisas, nem como encaixar na rotina deles. Acordava cedo demais e ficava sentada à mesa da cozinha a ouvir o frigorífico zumbir. A Inês chegava sempre apressada:

— Dormiste bem? Precisas de alguma coisa?

Eu só abanava a cabeça. Não queria incomodar.

Os dias passavam devagar. O Martim vinha pedir-me histórias antes de dormir; eu contava-lhe as mesmas que contava à Inês quando era pequena. Ele adormecia com a cabeça no meu colo e eu sentia um calor antigo no peito.

Mas nem tudo era ternura. O Rui começou a mostrar sinais de impaciência:

— A tua mãe mexeu nos meus papéis outra vez… — ouvi-o sussurrar à Inês uma noite.

— Ela só queria ajudar — respondeu ela, mas percebi que estava cansada.

Comecei a evitar entrar na sala quando ele lá estava. Sentia-me cada vez mais invisível.

Uma tarde, ouvi-os discutir na cozinha:

— Não podemos continuar assim! Ela está sempre aqui, não temos privacidade…

— Rui, é a minha mãe! Ela perdeu o pai há dois meses!

— Eu sei… mas isto não é vida para ninguém.

Fugi para o quarto antes que me vissem chorar. Senti vergonha por ser um incómodo. Pensei em voltar para casa, mas já não era minha — era só um túmulo de memórias.

No dia seguinte, tentei ser útil: lavei a roupa, arrumei os brinquedos do Martim, preparei sopa para todos. Quando a Inês chegou do trabalho, sorriu:

— Que cheirinho bom! Obrigada, mãe.

Mas o Rui nem olhou para mim durante o jantar.

O tempo foi passando e fui aprendendo a ocupar menos espaço: deixava os sapatos à porta do quarto, não mexia em nada que não fosse meu, saía para passear sozinha pelo bairro. Fiz amizade com a Dona Amélia do rés-do-chão; tomávamos café juntas e falávamos dos netos.

Numa dessas conversas, desabafei:

— Sinto-me deslocada… Como se estivesse sempre no lugar errado.

A Dona Amélia sorriu com tristeza:

— Somos todas assim quando envelhecemos. Os filhos querem ajudar, mas não sabem como. E nós temos medo de ser um fardo.

As palavras dela ficaram comigo durante dias.

Uma noite, depois de pôr o Martim na cama, sentei-me com a Inês na varanda.

— Sentes-te bem aqui? — perguntou ela baixinho.

Hesitei antes de responder:

— Sinto falta do teu pai… E tenho medo de vos atrapalhar.

Ela pegou na minha mão:

— Mãe, tu és família. Não és um estorvo. Só quero que sejas feliz.

Chorei pela primeira vez desde o funeral. Chorei tudo: o António, a casa vazia, o medo de ser esquecida.

Com o tempo, aprendi a aceitar a nova vida. O Rui também mudou; começou a pedir-me conselhos sobre jardinagem e até me levou ao mercado um sábado de manhã. O Martim continuou a ser o meu porto seguro.

Mas nunca deixei de sentir saudades do que perdi — nem do que nunca tive: uma relação sem barreiras com a minha filha, uma casa onde pudesse ser eu sem pedir licença.

Agora escrevo estas palavras sentada no quarto pequeno da casa da Inês. Ouço-os rir na sala e sinto-me grata por ter onde pertencer — mesmo que seja só por empréstimo.

Pergunto-me muitas vezes: será que alguma vez deixamos realmente de ser estrangeiros na vida dos outros? Ou será que todos carregamos este medo silencioso de não caber em lado nenhum?