Mais Um Filho: Entre o Amor e o Medo de Não Chegar Para Todos
— Outra vez, Inês? — O tom do Pedro cortou o silêncio da cozinha como uma faca. Eu ainda segurava o teste de gravidez na mão, as duas linhas cor-de-rosa a brilharem como um farol de pânico. O cheiro do café queimado misturava-se ao cheiro ácido do medo que me subia à garganta.
— Não foi planeado, Pedro… — tentei sussurrar, mas a minha voz saiu trémula, quase infantil. O Miguel, com oito meses, chorava no berço da sala. A Leonor e o Tiago brincavam no tapete, alheios à tempestade que se formava entre os pais.
Pedro passou as mãos pelo cabelo, exasperado. — Inês, nós já mal damos conta dos três! Achas que isto é vida? Eu a trabalhar horas extra, tu sem dormir há meses… E agora mais um bebé?
Senti as lágrimas a ameaçarem-me. Não era só cansaço — era culpa. Culpa por desejar aquele bebé e, ao mesmo tempo, sentir-me esmagada pelo peso da responsabilidade. Lembrei-me das noites em claro, do corpo dorido, das contas por pagar. Lembrei-me de como o Pedro se afastara desde o nascimento do Miguel, como as conversas tinham passado de sonhos para listas de supermercado e discussões sobre dinheiro.
— Eu sei que é difícil… mas vamos conseguir — tentei convencer-me mais a mim do que a ele.
Ele riu-se, amargo. — Vais conseguir tu sozinha? Porque eu já não sei se aguento.
O choro do Miguel intensificou-se. Fui buscá-lo, sentindo o olhar do Pedro cravado nas minhas costas. O Miguel agarrou-se ao meu pescoço com força, como se sentisse a tensão no ar. Sentei-me no sofá com ele ao colo e fechei os olhos por um instante. O som da televisão misturava-se ao barulho dos brinquedos e ao murmúrio das vozes na minha cabeça: “E se não chega para todos? E se falho com eles?”
Naquela noite, depois de adormecer os miúdos, sentei-me à mesa da cozinha com o Pedro. Ele estava calado, a olhar para o vazio. Tentei tocar-lhe na mão, mas ele afastou-se.
— Não sei se consigo continuar assim, Inês. Sinto-me preso. Não era esta a vida que imaginei para nós.
As palavras dele magoaram mais do que qualquer cansaço físico. — Achas que eu queria isto? Achas que é fácil para mim? — perguntei, a voz embargada.
Ele suspirou. — Não é isso… Só queria poder respirar. Sinto que estamos sempre a afundar-nos mais.
Ficámos em silêncio. O relógio da parede marcava duas da manhã. Lá fora, só se ouvia o vento a bater nas persianas.
Os dias seguintes foram uma sucessão de rotinas exaustivas: preparar pequenos-almoços, vestir crianças, mudar fraldas, correr para consultas no centro de saúde. A minha mãe ligava todos os dias:
— Inês, tens de pensar em ti também. Não podes viver só para os miúdos e para o Pedro.
Mas como? Quando é que sobra tempo para mim?
No supermercado, sentia os olhares das outras pessoas quando me viam com três crianças pequenas e uma barriga já a despontar sob a camisola larga. Uma senhora comentou baixinho para outra:
— Hoje em dia ninguém tem juízo… Quatro filhos!
Fingi não ouvir, mas por dentro doía. Doía porque eu própria me julgava todos os dias.
Uma noite, depois de todos adormecerem, sentei-me no chão da casa de banho e chorei em silêncio. Chorei pelo medo de não conseguir amar todos por igual. Chorei pelo Pedro, que já não me olhava como antes. Chorei pela Inês que fui antes dos filhos — aquela que sonhava viajar pelo mundo e ser escritora.
O Pedro começou a chegar cada vez mais tarde a casa. Dizia que era trabalho, mas eu sabia que era fuga. Uma noite ouvi-o ao telefone na varanda:
— Não sei quanto tempo mais aguento isto…
O coração apertou-se-me no peito. Será que ele ia embora? Será que ia ficar sozinha com quatro filhos?
No dia seguinte tentei falar com ele:
— Pedro, precisamos de ajuda. Não podemos continuar assim.
Ele olhou para mim com olhos cansados.
— E quem nos vai ajudar? Os teus pais mal conseguem cuidar deles próprios. Os meus estão longe… E dinheiro para uma ama não temos.
— Talvez devêssemos procurar apoio psicológico…
Ele encolheu os ombros.
— E achas que isso vai pôr comida na mesa?
A discussão terminou como sempre: em silêncio e mágoa.
O tempo foi passando e a barriga crescendo. As crianças começaram a perceber que algo mudava em casa. A Leonor perguntou-me uma noite:
— Mãe, porque é que tu e o pai estão sempre tristes?
Abracei-a com força.
— Às vezes os adultos ficam cansados, meu amor. Mas nós amamos-vos muito.
Ela olhou-me nos olhos.
— Eu também te amo, mãe.
Foi nesse momento que percebi: por mais difícil que fosse, eles precisavam de mim inteira — não só como mãe, mas como pessoa.
Comecei a escrever num caderno todas as noites depois de todos dormirem. Escrevia sobre os meus medos, sobre o amor pelos meus filhos, sobre o vazio entre mim e o Pedro. Escrevia para não enlouquecer.
Um dia encontrei uma folha rabiscada pela Leonor: “A mãe é uma heroína.” Chorei outra vez — mas desta vez foi um choro bom.
Quando chegou o dia do parto, o Pedro estava lá. Segurou-me a mão durante as contrações e chorou comigo quando ouvimos o primeiro choro do nosso quarto filho — o Francisco.
No hospital, olhámos um para o outro como se nos víssemos pela primeira vez em meses.
— Desculpa — sussurrou ele.
Eu sorri-lhe através das lágrimas.
— Também tenho medo… Mas juntos somos mais fortes.
Agora somos seis cá em casa. Ainda há dias maus — muitos — mas também há risos e abraços apertados no sofá pequeno demais para todos nós. Às vezes olho para os meus filhos e pergunto-me se algum dia vou conseguir dar-lhes tudo o que precisam: amor, atenção, pão na mesa e sonhos para perseguir.
Mas depois lembro-me daquele papel rabiscado pela Leonor: “A mãe é uma heroína.” Talvez ser mãe seja isso mesmo — tentar ser heroína todos os dias mesmo quando nos sentimos frágeis e sozinhas.
E vocês? Alguma vez sentiram que não iam conseguir? Como encontraram forças para continuar?