Adeus, Irmã: As Últimas Palavras do Meu Irmão Antes da Tragédia no Rio Tejo

— Miguel, não te esqueças de me ligar quando chegares a casa, está bem? — pedi-lhe, com aquela ansiedade típica de irmã mais nova, agarrada à ombreira da porta enquanto ele calçava os ténis já gastos.

Ele sorriu, aquele sorriso maroto que só ele tinha, e respondeu:

— Claro, Leonor. Prometo. Não te preocupes tanto, miúda.

Mas eu preocupava-me. Sempre me preocupei. Desde que o nosso pai nos deixou, era Miguel quem me fazia sentir segura. Era ele quem me defendia dos miúdos maus na escola, quem me fazia rir quando a nossa mãe chorava baixinho na cozinha. E agora, com os meus 14 anos e os seus 17, sentia que o mundo era demasiado grande para nós dois sozinhos.

Naquele sábado de junho, o calor apertava em Alhandra. O Tejo brilhava como prata líquida e os rapazes da vila juntaram-se para nadar junto ao cais velho. A mãe estava a trabalhar no turno da manhã no hospital de Vila Franca, e eu fiquei em casa a estudar para o exame de matemática. Mas não conseguia concentrar-me. A cada cinco minutos olhava para o telemóvel, à espera da mensagem do Miguel: “Já cheguei.”

O tempo passou devagar. O relógio da sala marcava 18h quando ouvi um burburinho na rua. Vozes agitadas, passos apressados. Fui à janela e vi Dona Teresa, a vizinha do lado, a correr em direção à nossa porta. O coração disparou-me no peito.

— Leonor! — gritou ela, ofegante — Vem cá depressa!

Desci as escadas a tremer. Lá fora, um grupo de pessoas cercava o cais. O senhor António, pescador velho e amigo do Miguel, olhou-me com olhos vermelhos:

— O teu irmão… Ele… O Miguel foi levado pela corrente…

O chão fugiu-me dos pés. Senti as pernas cederem e só me lembro de gritar:

— Não! Ele prometeu! Ele disse que ia ligar!

Corri até ao rio. Os amigos do Miguel estavam molhados, alguns choravam. O Pedro tentava explicar:

— Ele saltou para salvar o Tiago… O Tiago ficou preso numa corrente… O Miguel conseguiu empurrá-lo para fora, mas depois… depois não voltou à superfície.

O tempo parou. Lembro-me de ver a mãe chegar, ainda de bata branca, a correr descalça pela rua abaixo. O grito dela ecoou pelo cais inteiro:

— Miguel! Miguel!

Os bombeiros chegaram depressa, mas o rio era traiçoeiro naquele dia. Procuraram-no até ao anoitecer. Eu fiquei sentada na margem, abraçada à mãe, a olhar para a água escura e fria. Repetia baixinho:

— Ele prometeu… Ele prometeu…

Naquela noite ninguém dormiu em Alhandra. A notícia espalhou-se rápido — “O Miguel desapareceu no Tejo.” Os amigos vieram cá a casa, alguns traziam flores, outros só lágrimas e silêncios pesados. A mãe não largava o telemóvel, como se esperasse que ele ligasse mesmo assim.

No dia seguinte encontraram-no. O corpo do Miguel apareceu enredado nas algas junto à margem oposta. Lembro-me do cheiro a rio e do som das gaivotas quando os bombeiros trouxeram o corpo embrulhado num lençol branco.

O funeral foi um mar de gente. Nunca vi tanta dor junta num só lugar. A mãe desfeita, os amigos em choque, eu perdida num vazio sem fundo. O padre falou sobre coragem e sacrifício — “O Miguel morreu como viveu: a salvar os outros.” Mas eu só conseguia pensar na promessa quebrada.

Depois da tragédia, a nossa casa ficou silenciosa demais. A mãe deixou de cozinhar os pratos preferidos do Miguel. Eu deixei de ouvir música alta no quarto porque já não havia ninguém para reclamar do barulho. As roupas dele ficaram penduradas no armário durante meses — ninguém teve coragem de mexer nelas.

A culpa tornou-se minha companheira constante. Perguntava-me se devia tê-lo impedido de ir ao rio naquele dia. Se devia ter contado à mãe que ele ia nadar com os amigos. Se devia ter sido mais insistente quando lhe pedi para me ligar.

As pessoas tentavam consolar-nos:

— Ele era um herói.
— Fez o que qualquer irmão faria.
— Agora está num lugar melhor.

Mas nada disso preenchia o vazio que ele deixou. A escola tornou-se um tormento — todos olhavam para mim com pena ou evitavam cruzar o olhar. Os professores falavam baixo quando eu passava nos corredores.

Uma tarde, encontrei uma carta no fundo da gaveta do Miguel. Era para mim:

“Leonor,
Se algum dia eu não voltar a casa, quero que saibas que és a melhor irmã do mundo. Não deixes que nada nem ninguém te faça sentir menos do que isso. Promete-me que vais ser feliz por mim.
Com amor,
Miguel”

Chorei durante horas agarrada àquela folha de papel amarrotada. Senti raiva dele por ter partido, raiva do rio por tê-lo levado, raiva de mim por não ter feito mais.

Aos poucos, fui aprendendo a viver com a ausência dele. A mãe voltou a trabalhar no hospital e eu comecei a ajudar mais em casa. Mas todos os dias olho para o telemóvel antes de dormir — ainda espero ver uma mensagem dele.

Às vezes pergunto-me: será que algum dia vou conseguir perdoar-me? Será que alguma vez deixamos mesmo de esperar por quem amamos?

E vocês? Já sentiram este vazio? Como é que se aprende a viver com uma promessa quebrada?