Entre o Amor e o Silêncio: O Dia em que Enfrentei a Minha Sogra

— Achas mesmo que vais conseguir ser mãe? — A voz da Dona Lurdes cortou o ar da sala como uma faca. Eu estava sentada no sofá, as mãos pousadas sobre a barriga já saliente, sentindo o bebé mexer-se como se também ele pressentisse a tensão. O João, meu marido, fingia estar absorvido no telejornal, mas eu sabia que ouvia cada palavra.

O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. O relógio de parede marcava as horas com um tique-taque irritante. Eu queria responder, mas as palavras pareciam presas na garganta. Desde que engravidei, Dona Lurdes tinha uma opinião sobre tudo: o que eu comia, como me vestia, até a cor que escolhi para o quarto do bebé. Mas aquela pergunta foi diferente. Aquela pergunta doeu.

Lembro-me de olhar para o João, à espera de algum sinal de apoio. Ele desviou o olhar, encolhendo-se ainda mais no sofá. Era sempre assim: ele evitava conflitos, especialmente com a mãe. E eu? Eu era a forasteira, a mulher que “roubou” o filho dela. Senti as lágrimas ameaçarem cair, mas engoli em seco. Não ia chorar à frente dela.

— Dona Lurdes, por favor… — tentei começar, mas ela interrompeu-me com um gesto impaciente.

— Não leves a mal, Ana, mas ser mãe não é para qualquer uma. Eu criei três filhos sozinha, sabes? E nunca precisei de ajuda para nada. — O orgulho na voz dela era quase palpável.

A minha mãe sempre me disse para respeitar os mais velhos, mas também me ensinou a não deixar ninguém pisar-me. Naquela noite, enquanto Dona Lurdes continuava a falar sobre os sacrifícios que fez e como as mulheres de hoje são frágeis, senti uma raiva surda crescer dentro de mim.

Depois do jantar, enquanto arrumava a cozinha sozinha — porque Dona Lurdes nunca mexia uma palha quando vinha cá a casa — ouvi-a comentar com o João:

— Ela não sabe sequer fazer um arroz decente, quanto mais criar uma criança.

Foi aí que percebi: ou eu falava, ou ia acabar por me perder de mim mesma.

Naquela noite não dormi. O João adormeceu rapidamente, como se nada tivesse acontecido. Fiquei horas a olhar para o teto, sentindo o bebé dar pontapés suaves. Perguntei-me se estava a ser demasiado sensível. Talvez fosse das hormonas. Mas no fundo sabia que não era só isso. Era cansaço acumulado de meses de críticas veladas e olhares de desdém.

No dia seguinte, acordei decidida. Preparei o pequeno-almoço e esperei que Dona Lurdes descesse do quarto de hóspedes. Quando ela entrou na cozinha, sentei-me à mesa e olhei-a nos olhos.

— Dona Lurdes, precisamos de conversar.

Ela ergueu uma sobrancelha, surpresa com a minha firmeza.

— Sobre o quê?

— Sobre as coisas que tem dito… sobre mim ser mãe, sobre não estar à altura. Eu sei que não sou perfeita e que vou cometer erros, mas gostava de sentir apoio nesta fase tão importante da minha vida. — A minha voz tremia um pouco, mas continuei: — As suas palavras magoam-me. E eu preciso que saiba disso.

O silêncio caiu novamente. Por um momento pensei que ela ia levantar-se e sair da sala. Mas ficou ali parada, olhando-me como se me visse pela primeira vez.

— Achas que estou a ser dura demais contigo? — perguntou finalmente.

— Acho — respondi sem hesitar. — E acho que isso está a afastar-nos. Eu quero que o meu filho tenha uma avó presente, mas não quero viver com medo das suas críticas.

Ela suspirou e sentou-se à minha frente. Pela primeira vez desde que entrei naquela família, vi vulnerabilidade nos olhos dela.

— Sabes… quando tive o João, também ouvi coisas horríveis da minha sogra. Nunca consegui responder-lhe como tu estás a fazer agora. Talvez por isso seja assim contigo…

Ficámos ali sentadas em silêncio durante uns minutos. Senti uma mistura estranha de alívio e tristeza. Alívio por finalmente ter dito o que sentia; tristeza por perceber que talvez Dona Lurdes fosse apenas o produto das suas próprias dores.

O João entrou na cozinha nesse momento, olhando-nos desconfiado.

— Está tudo bem?

Olhei para ele e depois para Dona Lurdes.

— Está — disse ela antes de mim. — A tua mulher é mais forte do que parece.

Nos dias seguintes, as coisas mudaram devagarinho. Dona Lurdes continuava crítica, mas agora havia momentos em que se calava antes de dizer algo desagradável. O João começou a perceber o peso das palavras da mãe e tentou estar mais presente ao meu lado.

Mas nem tudo ficou resolvido num passe de mágica. Houve discussões acesas depois disso; houve lágrimas e portas batidas. A família dividiu-se: alguns achavam que eu tinha feito bem em enfrentar Dona Lurdes; outros diziam que devia ter engolido em seco pelo bem da paz familiar.

A gravidez avançou e com ela vieram novas inseguranças: será que ia conseguir ser mãe? Será que ia repetir os erros da Dona Lurdes? Será que o João ia conseguir ser o marido e pai de quem eu precisava?

No dia em que o nosso filho nasceu — o Miguel — Dona Lurdes apareceu no hospital com um ramo de flores e um sorriso tímido.

— Parabéns, Ana — disse ela, tocando-me no ombro com uma delicadeza inesperada.

Chorei nesse momento. Chorei porque percebi que tinha valido a pena lutar pelo meu espaço naquela família; chorei porque sabia que ainda havia um longo caminho pela frente; chorei porque ser mãe é também aprender a perdoar e a recomeçar todos os dias.

Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito diferente? Teria sido mais fácil calar-me? Talvez. Mas será que teria sido mais feliz? Será que teria conseguido ensinar ao meu filho o valor da coragem e do respeito próprio?

E vocês? Já sentiram necessidade de enfrentar alguém da família pelo vosso bem-estar? Até onde devemos ir para proteger a nossa paz?