Sempre me senti uma estranha na minha própria casa: a verdade que a minha mãe escondeu de mim
— Por que é que nunca me dizes nada? — perguntei à minha mãe, com a voz embargada, enquanto a chuva batia forte nas janelas da sala. O relógio marcava quase meia-noite, mas o sono era impossível. O silêncio dela era mais pesado do que qualquer tempestade.
Ela olhou para mim, os olhos marejados, mas não respondeu. Senti o nó na garganta apertar ainda mais. Desde pequena, sempre me senti diferente. A minha irmã, a Inês, era o orgulho da família: loira, alta, com aquele sorriso fácil que conquistava toda a gente. Eu era morena, baixa, com sardas e um cabelo rebelde que nunca obedecia ao pente. Mas não era só a aparência. Era como se houvesse uma barreira invisível entre mim e eles.
Lembro-me de ter uns oito anos quando perguntei ao meu pai se ele me amava tanto quanto à Inês. Ele riu-se, mas não respondeu diretamente. “Tu complicas sempre tudo, Mariana”, disse-me. Essa frase ficou-me gravada. Passei a adolescência a tentar ser menos complicada, mais parecida com a minha irmã. Mas quanto mais tentava, mais distante me sentia.
Na escola, os professores perguntavam se éramos mesmo irmãs. “Vocês são tão diferentes!”, diziam. Eu sorria, mas por dentro sentia-me cada vez mais deslocada. Comecei a alimentar uma suspeita silenciosa: e se eu fosse adotada? Nunca tive coragem de perguntar diretamente. Em vez disso, vasculhava gavetas à procura de papéis antigos, fitava fotografias antigas à procura de pistas. Nada.
Os anos passaram e a distância entre mim e a família só aumentou. A Inês foi estudar para Lisboa e eu fiquei em casa, a ajudar a minha mãe com as tarefas e a cuidar do meu pai, que começava a dar sinais de cansaço e irritação constantes. Sentia-me presa numa vida que não era minha.
Uma noite, depois de mais uma discussão em que o meu pai me acusou de ser ingrata e difícil, fechei-me no quarto e chorei até adormecer. No dia seguinte, tentei falar com a minha mãe.
— Mãe, tu amas-me? — perguntei-lhe de repente, enquanto ela descascava batatas na cozinha.
Ela parou o que estava a fazer e olhou para mim com uma expressão estranha.
— Claro que sim, Mariana. Porquê essa pergunta?
— Porque às vezes sinto que não pertenço aqui — confessei.
Ela suspirou fundo e voltou ao trabalho sem dizer mais nada. O silêncio dela doía mais do que qualquer resposta.
O tempo foi passando e eu fui-me fechando cada vez mais em mim mesma. Os meus amigos diziam que eu era demasiado sensível, mas ninguém sabia o peso que carregava todos os dias.
Quando fiz vinte e cinco anos, o meu pai adoeceu gravemente. A Inês voltou para casa para ajudar e, pela primeira vez em anos, estávamos todos juntos à mesa. Mas o ambiente era tenso. O meu pai mal falava comigo; só tinha olhos para a Inês.
Numa dessas noites, depois de um jantar particularmente silencioso, ouvi os meus pais a discutirem na cozinha. Fiquei à escuta atrás da porta.
— Ela tem direito a saber! — dizia a minha mãe em voz baixa.
— Não compliques as coisas agora — respondeu o meu pai secamente.
O coração bateu-me descompassado. Fui para o quarto e não consegui dormir. No dia seguinte confrontei a minha mãe.
— O que é que eu tenho direito a saber? — perguntei-lhe de rompante.
Ela ficou pálida como a cal da parede.
— Mariana… há coisas que é melhor não mexer — murmurou.
— Eu preciso de saber! Sempre senti que havia algo errado! — gritei quase em desespero.
Ela sentou-se à mesa da cozinha e fez-me sinal para me sentar também. Ficámos ali em silêncio durante minutos intermináveis até ela finalmente falar.
— Tu não és adotada, Mariana — começou ela devagarinho. — Mas… há algo que nunca te dissemos porque achámos que te íamos proteger assim.
O meu coração batia tão forte que pensei que ia desmaiar.
— Quando engravidei de ti… o teu pai estava numa fase muito difícil. Tínhamos muitos problemas financeiros e ele… ele teve um caso com outra mulher. Eu soube logo depois de saber que estava grávida de ti.
Fiquei sem ar. Senti o chão fugir-me dos pés.
— Ele queria separar-se — continuou ela com lágrimas nos olhos — mas quando soube da gravidez decidiu ficar. Sempre te amou à sua maneira… mas nunca conseguiu perdoar-se nem perdoar-me por termos continuado juntos por tua causa.
As palavras dela ecoaram na minha cabeça como um trovão. Não era adotada… mas era o motivo pelo qual os meus pais tinham ficado juntos contra vontade própria? Era por isso que sentia aquele peso invisível desde sempre?
Levantei-me da mesa sem dizer nada e fui para o meu quarto. Chorei como nunca tinha chorado antes. Senti raiva do meu pai por nunca ter conseguido amar-me sem reservas, raiva da minha mãe por ter escondido tudo isto durante tantos anos… mas acima de tudo senti uma tristeza profunda por mim mesma, por aquela criança que só queria sentir-se amada e aceite.
Nos dias seguintes tentei falar com o meu pai, mas ele evitava-me. A Inês percebeu que algo se passava e tentou saber o que era, mas não consegui explicar-lhe sem desabar completamente.
A relação com a minha mãe ficou tensa durante semanas. Ela tentava aproximar-se, mas eu precisava de tempo para digerir tudo aquilo. Comecei a sair mais de casa, a passar tempo sozinha no parque ou à beira-rio, onde podia pensar sem sentir o peso dos olhares familiares.
Foi numa dessas caminhadas solitárias que percebi que precisava de perdoar os meus pais — não por eles, mas por mim mesma. Não podia continuar a viver presa ao passado deles ou às escolhas que fizeram antes de eu nascer.
Voltei para casa nessa noite e encontrei a minha mãe sentada na sala escura, à espera.
— Desculpa — disse ela assim que me viu entrar. — Devíamos ter-te contado há muito tempo.
Sentei-me ao lado dela e ficámos ali em silêncio durante muito tempo. Pela primeira vez senti que podia baixar as defesas e deixar-me ser vulnerável.
— Mãe… eu só queria sentir-me parte desta família — confessei baixinho.
Ela abraçou-me com força e chorámos as duas juntas.
Hoje sei que as famílias são feitas de segredos, silêncios e escolhas difíceis. Sei também que não sou responsável pelas dores dos meus pais nem pelo passado deles. Mas ainda me pergunto: quantas pessoas vivem toda uma vida sem saberem toda a verdade sobre si mesmas? E será que algum dia conseguimos mesmo pertencer completamente ao lugar onde nascemos?