Depois da partida do António, a minha filha esqueceu-se que ainda sou adulta
— Mãe, já tomou os comprimidos hoje? — A voz da Inês ecoou pela cozinha, misturada com o cheiro do café acabado de fazer. Eu estava sentada à mesa, a olhar para a chávena vazia, e por um momento não respondi. Não porque não tivesse ouvido, mas porque me doía o tom dela: aquele misto de preocupação e impaciência, como se eu fosse uma criança distraída.
— Tomei, Inês. Não sou nenhuma miúda — respondi, tentando manter a voz firme. Ela suspirou, pousando a mala na cadeira.
— Desculpe, mãe. Só quero ter a certeza. Desde que o pai… — não terminou a frase. O nome do António ainda pairava entre nós como uma sombra.
Foram quarenta e dois anos ao lado dele. O António era o meu oposto: calmo, ponderado, gostava de planear tudo ao pormenor. Eu era o furacão — cheia de ideias, pronta a agir sem pensar duas vezes. Ríamos disso tantas vezes: “Tu és o vento, eu sou a âncora”, dizia ele. E juntos éramos uma equipa. Mesmo nas pequenas coisas: as compras ao sábado de manhã, as discussões sobre o melhor caminho para ir até à praia, os serões em silêncio a ver televisão.
Quando ele partiu, senti-me como um barco à deriva. Mas nunca pensei que a Inês ia tentar agarrar no leme da minha vida.
— Mãe, não se esqueça que hoje tenho de ir consigo ao centro de saúde. Marquei consulta para verem aquela tosse — continuou ela, já com o telemóvel na mão, a marcar qualquer coisa no calendário.
— Inês, eu sei ir ao centro de saúde sozinha. Sempre fui — tentei sorrir, mas ela nem olhou para mim.
— Prefiro ir consigo. Nunca se sabe…
Nunca se sabe o quê? Que me perco no caminho? Que me esqueço do nome do médico? Senti uma raiva surda crescer dentro do peito. Não era só tristeza pelo António — era também esta sensação de ser empurrada para um papel que não me pertencia.
Naquela tarde, enquanto esperava pela consulta, olhei à volta: outras mulheres da minha idade estavam ali sozinhas, algumas até mais velhas do que eu. Sorriam umas às outras, trocavam receitas e histórias dos netos. Eu sentia-me presa à cadeira ao lado da Inês, que não largava o telemóvel.
— Mãe, está tudo bem? — perguntou ela, baixando finalmente o olhar.
— Está — menti. Mas por dentro gritava: deixa-me respirar!
Quando voltámos para casa, tentei falar com ela.
— Inês, preciso de te dizer uma coisa…
— O quê? — Ela já estava a tirar os sapatos no corredor.
— Eu sei que te preocupas comigo. Mas não quero que me trates como se eu fosse incapaz. Ainda sou adulta. Ainda sou tua mãe.
Ela ficou parada, sapato na mão.
— Mãe… eu só quero ajudar. Desde que o pai morreu… tenho medo de te perder também.
A voz dela tremeu e vi lágrimas nos olhos da minha filha. Senti-me dividida entre a vontade de abraçá-la e o desejo de gritar que precisava do meu espaço.
— Eu entendo — disse baixinho. — Mas preciso que confies em mim. Preciso de sentir que ainda posso tomar decisões.
Ela assentiu devagar e fomos as duas para a sala em silêncio. Liguei a televisão para disfarçar o embaraço.
Nos dias seguintes, reparei que ela tentava controlar-se: perguntava menos vezes se eu tinha comido ou tomado os remédios. Mas bastava um pequeno atraso no telefone para ela ligar aflita: “Mãe, está tudo bem?”
Comecei a sair mais sozinha: fui ao mercado da Dona Amélia comprar fruta fresca; voltei à missa das quartas-feiras; aceitei um convite das vizinhas para jogar cartas à tarde. Cada pequena vitória era um grito silencioso de liberdade.
Mas nem tudo era fácil. Uma noite acordei sobressaltada com um barulho estranho na cozinha. O coração disparou: será que alguém tinha entrado? Peguei no telemóvel e quase liguei à Inês… mas parei. Fui devagar até à cozinha e vi apenas um copo caído no chão — provavelmente mal pousado por mim antes de me deitar.
Sentei-me à mesa e chorei baixinho. Não era só medo do escuro ou da solidão; era medo de me tornar aquilo que todos esperavam: uma velha frágil, dependente dos outros.
No domingo seguinte, o almoço em família foi tenso. O meu genro, Rui, tentou animar o ambiente contando piadas sobre o Benfica; os netos corriam pela sala; mas eu sentia o olhar atento da Inês em cada movimento meu.
Quando me levantei para ir buscar mais arroz à cozinha, ouvi-a sussurrar ao Rui:
— Achas que ela está mesmo bem?
Parei à porta e respirei fundo antes de voltar para a mesa com um sorriso forçado.
Depois do almoço, sentei-me no jardim com a minha neta mais velha, a Sofia.
— Avó, estás triste? — perguntou ela com aquela sinceridade desarmante das crianças.
Sorri-lhe e fiz-lhe uma festa no cabelo.
— Não estou triste, querida. Só estou… diferente. Às vezes as pessoas mudam quando perdem alguém importante.
Ela encostou-se ao meu ombro e ficámos ali caladas durante um bom bocado.
Nessa noite escrevi uma carta ao António. Não sei se acredito que ele ainda me ouve, mas precisava de pôr em palavras aquilo que me sufocava:
“António,
Sinto tanto a tua falta. A casa está cheia de silêncios novos e de vozes antigas que não me deixam dormir. A Inês tenta cuidar de mim como se eu fosse feita de vidro — mas eu continuo aqui, inteira por dentro mesmo quando pareço partida por fora. Queria tanto que estivesses aqui para veres como cresceu a Sofia… Para me ajudares a mostrar à nossa filha que ainda sou capaz de viver sozinha.”
Guardei a carta na gaveta da mesa-de-cabeceira e adormeci com lágrimas nos olhos.
Os meses passaram devagar. A Inês foi aprendendo a dar-me espaço — às vezes com relutância, outras vezes com alívio visível por ver que eu conseguia dar conta do recado. Mas nunca voltámos a ser as mesmas: ela mais cuidadora do que filha; eu mais resistente do que mãe.
Um dia, depois de um passeio pelo parque sozinha (e sem avisar ninguém!), voltei para casa e encontrei-a sentada no sofá à minha espera.
— Mãe… desculpa se às vezes exagero — disse ela antes mesmo de eu tirar o casaco.
Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão.
— Só quero que saibas que ainda sou capaz de viver por mim própria. Preciso disso tanto quanto tu precisas de cuidar de mim.
Ela sorriu pela primeira vez em muito tempo sem aquele peso nos olhos.
Agora olho para trás e penso: será assim sempre? Será possível encontrar equilíbrio entre querer proteger quem amamos e deixá-lo voar sozinho? Talvez todos nós sejamos barcos à deriva depois da tempestade — mas será que algum dia aprendemos mesmo a navegar sozinhos outra vez?