O Meu Avô Casou com a Vizinha e Agora Somos Estranhos
— Não me venhas pedir mais nada, Mariana. A tua mãe já disse o que tinha a dizer. — A voz do meu avô, outrora doce e cheia de histórias, agora soava fria, quase cortante.
Fiquei ali, parada à porta da sala, com o cheiro do café acabado de fazer a misturar-se com o amargo da rejeição. Desde que a avó Rosa partiu, há dois anos, tudo mudou. Mas nada me preparou para o dia em que o avô António apareceu de braço dado com a Dona Emília, a vizinha do lado, e anunciou que iam casar.
Lembro-me do silêncio que se abateu sobre a mesa nesse almoço de domingo. A minha mãe largou o garfo, o meu pai olhou para o prato como se procurasse respostas no arroz de pato. Eu só conseguia pensar na avó Rosa, nas tardes em que fazíamos bolos juntas enquanto o avô contava piadas velhas e ria até chorar.
— Mariana, anda cá ajudar-me com as loiças — chamou a minha mãe, tentando disfarçar as lágrimas.
A partir desse dia, o avô mudou. Deixou de vir aos jantares de família, deixou de ligar no meu aniversário. Quando passávamos pelo portão dele, fingia não nos ver. A Dona Emília sorria sempre, mas era um sorriso estranho, como quem sabe um segredo que mais ninguém sabe.
Uma tarde, criei coragem e bati à porta deles. O coração batia-me tão forte que temi que se ouvisse do lado de dentro. O avô abriu a porta só uma nesga.
— O que queres?
— Só queria saber se está tudo bem… — murmurei.
Ele olhou-me como se eu fosse uma estranha. — Agora tenho a minha vida, Mariana. Vai para casa.
Fechou a porta devagar. Fiquei ali parada, com vontade de gritar. Como é possível alguém esquecer uma família inteira assim?
Os dias foram passando e a minha mãe foi-se apagando. O meu pai tentava animar-nos, mas até ele parecia mais velho. Ao jantar, falávamos pouco. A ausência do avô era um buraco negro na nossa rotina.
Uma noite ouvi os meus pais a discutir na cozinha:
— Não percebo como é que o teu pai pôde fazer isto! — dizia o meu pai.
— Ele está cego pela Dona Emília! — respondeu a minha mãe, num sussurro furioso. — Ela sempre invejou a nossa família…
— Achas mesmo que ela tem culpa?
— Não sei! Mas desde que ela entrou na vida dele, ele mudou completamente!
Fui para o quarto com lágrimas nos olhos. Senti raiva da Dona Emília, mas também do avô. Como podia ele apagar tantos anos de amor e dedicação?
No Natal desse ano, fizemos tudo como sempre: árvore montada, bolo-rei na mesa, presentes embrulhados. Mas faltava-lhe o riso do avô, as histórias da aldeia, os brindes barulhentos. A minha mãe chorou baixinho quando abrimos os presentes.
No dia seguinte decidi escrever-lhe uma carta:
“Avô,
Sinto muito a tua falta. Sei que tens direito a ser feliz outra vez, mas custa-me ver-te afastado de nós. A avó Rosa nunca deixaria isto acontecer. Por favor, não te esqueças de nós.
Com amor,
Mariana”
Esperei dias por resposta. Nada.
O tempo foi passando e comecei a ouvir rumores na rua: diziam que a Dona Emília controlava tudo lá em casa, que o avô já não saía sem ela, que até os amigos antigos tinham deixado de aparecer.
Um dia encontrei o Sr. Manuel do café:
— O teu avô não é o mesmo desde que casou com aquela mulher… — disse-me em voz baixa. — Nunca pensei vê-lo tão sozinho.
Sozinho? Mas ele tinha-nos a nós! Ou será que também sentia falta da família?
Numa tarde de primavera, vi-o no jardim a regar as flores. Parecia cansado, mais magro. Criei coragem e saltei o muro baixo que separava os nossos quintais.
— Avô…
Ele olhou-me surpreendido.
— Mariana? O que fazes aqui?
— Só queria falar contigo… Tenho saudades tuas.
Ele hesitou, olhou para trás como se temesse ser apanhado.
— Não devias estar aqui… A Emília não gosta…
— E tu? Gostas?
Ele ficou calado. Vi-lhe os olhos marejados de lágrimas.
— Tenho saudades vossas… Mas é complicado…
— Complicado porquê? Somos família!
Nesse momento ouvi passos atrás de mim. A Dona Emília apareceu à porta:
— António! Anda cá dentro! — gritou ela, olhando-me com desdém.
O avô baixou os olhos e entrou em casa sem dizer mais nada.
Voltei para casa destroçada. Contei tudo à minha mãe e ela abraçou-me com força.
— Ele está preso naquela relação… — sussurrou ela.
Os meses passaram e fui aceitando que talvez nunca mais tivéssemos o avô de volta como antes. Mas nunca deixei de lhe escrever cartas — cartas que talvez nunca lesse, mas que me ajudavam a manter viva a esperança.
Um dia recebi uma mensagem inesperada: “Preciso falar contigo. Encontra-me no jardim amanhã às 18h.” Era do avô.
No dia seguinte fui ao jardim com o coração aos saltos. Ele estava lá, sentado no banco onde costumávamos lanchar ao domingo.
— Mariana… Desculpa tudo isto. Sinto-me velho e cansado… Quando perdi a tua avó achei que nunca mais ia ser feliz. A Emília apareceu e parecia dar sentido à minha vida outra vez… Mas agora sinto-me preso… Tenho medo de ficar sozinho outra vez…
Abracei-o com força.
— Nunca vais estar sozinho enquanto nos tiveres a nós.
Ele chorou baixinho no meu ombro.
Nesse dia percebi que por trás da frieza havia medo e solidão. Talvez todos nós estivéssemos apenas a tentar sobreviver à dor da perda à nossa maneira.
Hoje continuo sem ter o avô todos os dias como antes. Mas sei que ele lê as minhas cartas e às vezes responde com um bilhete escondido no portão: “Amo-vos sempre”.
Pergunto-me: quantas famílias se perdem assim, entre silêncios e mágoas não ditas? Será possível reconstruir laços partidos pelo tempo e pelas escolhas? E vocês, já sentiram esta distância dentro da vossa própria família?