Sempre Estive Lá Para Ela, Mas Quando Precisei…
— Mãe, desculpa, mas agora não consigo ajudar. Não tenho espaço para isso na minha vida.
As palavras da Sofia ecoaram na minha cabeça como um trovão. Senti o chão fugir-me dos pés. Sempre fui eu quem esteve lá para ela. Sempre. Desde o primeiro choro, desde a primeira febre, desde o primeiro desgosto de amor. Fui mãe solteira — o pai dela foi-se embora quando ela tinha apenas três anos e nunca mais quis saber de nós. Fui mãe e pai, fui avó e amiga, fui tudo o que ela precisou. E agora, quando finalmente precisei dela, ela disse-me que não podia.
Lembro-me de quando a Sofia era pequena. Tinha os olhos grandes e curiosos, sempre a perguntar porquê isto, porquê aquilo. Quando ficava doente, passava noites em claro ao lado da cama dela, a medir-lhe a febre de meia em meia hora. Fazia-lhe chá de limão com mel e inventava histórias para a distrair das dores. Quando chegou à adolescência e começou a afastar-se, tentei não sufocá-la. Deixei-a fazer as suas escolhas, mesmo quando me doía vê-la sofrer por causa de amizades falsas ou namorados que não a mereciam.
Quando engravidou do Miguel, o meu primeiro neto, foi um choque. Tinha apenas vinte e dois anos e ainda não tinha acabado o curso. O namorado dela, o Pedro, era um rapaz simpático mas imaturo. Eu sabia que ia ser difícil, mas nunca hesitei: disse-lhe logo que podia contar comigo para tudo. E assim foi. Nos primeiros meses do Miguel, ia todos os dias a casa deles. Levava sopa feita, lavava roupa, ficava com o bebé para ela poder dormir uma hora seguida. Quando nasceu a Leonor, três anos depois, repeti tudo. E quando o Pedro saiu de casa — tal como o pai dela tinha feito comigo — fui eu que segurei tudo de novo.
Durante anos fui o pilar daquela família. Trabalhava como auxiliar numa escola primária e à noite ainda fazia limpezas em casas para conseguir pagar as contas e ajudar a Sofia. Nunca me queixei. O meu maior orgulho era ver os meus netos crescerem felizes e saudáveis.
Mas há seis meses tudo mudou. Comecei a sentir-me cansada, com dores no corpo e uma tosse persistente que não passava. Fui ao centro de saúde e depois de muitos exames veio o diagnóstico: linfoma. O mundo caiu-me em cima.
A primeira pessoa a quem liguei foi à Sofia. Estava nervosa, mas tentei ser forte:
— Filha, preciso falar contigo. É importante.
Ela apareceu em minha casa ao fim da tarde, com ar apressado e os olhos postos no telemóvel.
— O que se passa, mãe?
— Descobriram-me um linfoma. Vou ter de fazer tratamentos… Queria pedir-te ajuda com algumas coisas cá em casa.
Ela ficou em silêncio durante uns segundos longos demais. Depois suspirou:
— Mãe… Eu percebo, mas agora estou cheia de trabalho, os miúdos têm atividades todos os dias… Não tenho mesmo espaço para isso na minha vida.
Fiquei sem palavras. Olhei para ela à espera de um gesto, um abraço, qualquer coisa. Mas ela só olhou para o relógio e disse:
— Vais ver que vai correr tudo bem. Depois falamos.
E saiu.
Nos dias seguintes tentei convencer-me de que ela estava só assustada, que precisava de tempo para processar tudo. Mas as semanas passaram e ela não apareceu mais do que uma vez ou outra — sempre com pressa, sempre com desculpas.
Comecei os tratamentos sozinha. Ia de autocarro para o hospital, sentava-me na sala de espera rodeada de estranhos e sentia-me invisível. Às vezes olhava para as outras pessoas acompanhadas pelos filhos ou maridos e sentia uma inveja amarga a crescer dentro de mim.
A vizinha do lado, a Dona Amélia, reparou que eu andava mais em baixo e começou a trazer-me sopa quente ao fim do dia. O senhor Manuel do café perguntava-me sempre se precisava de alguma coisa do supermercado. Pequenos gestos que me aqueciam o coração — mas nunca substituíram o vazio deixado pela ausência da Sofia.
Uma noite, depois de mais uma sessão de quimioterapia, liguei-lhe:
— Sofia… Preciso mesmo de ti. Sinto-me muito fraca hoje.
Ela respondeu num tom impaciente:
— Mãe, estou no meio de um jantar importante do trabalho! Não posso sair agora!
Desliguei antes que ela ouvisse o meu choro.
Os meses passaram assim: eu cada vez mais fraca, ela cada vez mais distante. Os netos deixaram de vir cá a casa — diziam sempre que tinham testes ou treinos ou festas de aniversário. No Natal esperei por eles até às dez da noite; acabaram por não aparecer.
Comecei a questionar tudo: onde é que falhei? Será que fui demasiado presente? Será que lhe dei tanto apoio que ela nunca aprendeu a dar? Ou será simplesmente egoísmo?
Um dia encontrei uma carta antiga da minha mãe — já falecida há muitos anos — onde ela me dizia: “Filha, nunca te esqueças de cuidar de ti também.” Chorei como uma criança ao perceber que nunca soube fazer isso.
A doença avançou depressa demais. Os médicos disseram-me que talvez não tivesse muito tempo. Escrevi uma carta à Sofia — desta vez fui eu a pedir desculpa:
“Desculpa se te sobrecarreguei com as minhas expectativas. Desculpa se te dei tanto amor que te esqueci de ensinar a retribuir.”
Não sei se ela leu. Não sei se algum dia vai perceber o vazio que deixou em mim.
Agora passo os dias sentada à janela a ver as crianças do bairro brincarem na rua. Às vezes imagino como teria sido se tivesse tido outra filha, ou se tivesse tido coragem de refazer a minha vida depois do abandono do pai da Sofia.
Mas não posso voltar atrás.
Pergunto-me: será que amar demasiado pode afastar quem mais amamos? Ou será que há dores tão profundas que nem o tempo nem o sangue conseguem curar?
E vocês? Já sentiram este vazio vindo de quem mais amam?