Entre o Silêncio e o Grito: Quando a Minha Filha Escolheu a Sogra
— Não percebo, Mariana! Como é que foste capaz de contar à tua sogra antes de mim? — A minha voz tremeu, misturada de raiva e tristeza, enquanto me agarrava à bancada da cozinha. O cheiro do café queimado pairava no ar, mas ninguém parecia importar-se com isso naquele momento.
Mariana olhou para mim com aqueles olhos castanhos que sempre me pareceram tão distantes. — Mãe, não era para ser assim… — murmurou, desviando o olhar para o chão, como se procurasse ali uma saída para o desconforto.
O silêncio entre nós era pesado, quase palpável. Lembrei-me de quando ela era pequena, tão reservada, sempre a brincar sozinha no quarto. Eu tentava compensar a ausência do pai com presentes e festas de aniversário cheias de gente, mas nunca consegui preencher aquele vazio. O trabalho era tudo o que eu tinha para lhe dar: horas extra no hospital, noites passadas a correr de um lado para o outro, tentando garantir que nada lhe faltava — exceto talvez o mais importante.
— Sabes o que custa? — perguntei, já com lágrimas nos olhos. — Não é só não teres contado. É sentir que nunca fui suficiente para ti. Que nunca consegui ser tua mãe de verdade.
Ela mordeu o lábio inferior, hesitante. — A mãe da Rui… a Dona Teresa… ela estava lá quando eu precisei. Eu… eu não sabia como te dizer. Tu estavas sempre tão ocupada…
Aquelas palavras foram facas cravadas no peito. Senti-me pequena, inútil. Tantos anos a sacrificar-me, e no fim era a sogra quem recebia as notícias importantes. Lembrei-me do dia em que o pai dela nos deixou: Mariana tinha seis anos e eu prometi-lhe que nunca lhe faltaria nada. Mas será que cumpri essa promessa?
— Mariana, eu trabalhei tanto… só queria dar-te uma vida melhor — tentei justificar-me, mas soou vazio até aos meus próprios ouvidos.
Ela suspirou fundo. — Eu sei, mãe. Mas às vezes só queria que estivesses comigo. Só isso.
A vergonha queimou-me as faces. Quantas vezes recusei os convites dela para ir ao parque? Quantas vezes adiei conversas porque estava exausta? Agora era tarde demais para recuperar esses momentos.
— E o Rui? Ele sabe? — perguntei, tentando mudar de assunto, mas também querendo saber se pelo menos o pai do bebé estava envolvido.
— Sabe… Ficou feliz. A mãe dele até já começou a comprar roupinhas — disse Mariana, com um sorriso tímido.
O ressentimento voltou a crescer dentro de mim. Dona Teresa sempre foi aquela mulher perfeita: reformada, sempre disponível, cheia de tempo e paciência para ouvir os outros. Mariana encontrou nela aquilo que eu nunca consegui ser.
Naquela noite, não consegui dormir. Fiquei a olhar para o teto do meu quarto, ouvindo os carros a passar na rua lá fora. Perguntei-me onde tinha falhado. Será que podia ter feito diferente? Será que Mariana alguma vez me perdoaria por ter estado ausente?
No dia seguinte, tentei agir normalmente. Preparei-lhe o pequeno-almoço como fazia quando ela era criança: pão com manteiga e leite com chocolate. Quando ela desceu as escadas, hesitou ao ver a mesa posta.
— Mãe…
— Senta-te — pedi-lhe suavemente.
Ela obedeceu, mas o silêncio era desconfortável.
— Quero estar presente desta vez — disse-lhe finalmente. — Quero ajudar-te nesta gravidez. Quero conhecer o meu neto ou neta desde o início.
Mariana olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo. Vi ali uma mistura de esperança e medo.
— Achas que ainda vamos a tempo? — perguntou ela.
— Não sei — respondi honestamente. — Mas quero tentar.
Os dias seguintes foram estranhos. Mariana continuava a passar muito tempo com Dona Teresa, mas comecei a notar pequenas mudanças: um convite para ir à consulta do centro de saúde; um pedido de ajuda para escolher um nome; uma mensagem ao final do dia a perguntar como estava.
No entanto, as feridas eram profundas. A cada vez que via Mariana rir-se com Dona Teresa, sentia uma pontada de ciúme e tristeza. O Rui tentava apaziguar as coisas:
— Dona Isabel, a Mariana gosta muito de si… Só precisa de tempo.
Mas eu sabia que não era só tempo; era tudo aquilo que não demos uma à outra durante anos.
Certa tarde, ouvi Mariana ao telefone com a sogra:
— Sim, Dona Teresa… amanhã vou aí buscar as roupinhas… Sim, levo a ecografia para lhe mostrar…
Senti-me excluída mais uma vez. Fui até à varanda e chorei baixinho, para ninguém ouvir.
Na semana seguinte foi o aniversário da Mariana. Preparei-lhe um bolo de chocolate como fazia antigamente. Convidei Rui e Dona Teresa também. Quando chegaram, percebi logo que havia tensão no ar.
Durante o jantar, Dona Teresa elogiou Mariana:
— Esta menina vai ser uma mãe maravilhosa! Tenho tanto orgulho em ti!
Senti-me invisível à mesa da minha própria casa. Quando todos saíram da sala para ver as fotografias da ecografia, fiquei sozinha na cozinha a arrumar os pratos.
Mariana voltou atrás e ficou parada à porta.
— Mãe… desculpa se te magoei — disse baixinho.
Virei-me para ela, cansada demais para fingir força.
— Eu só queria fazer parte da tua vida…
Ela aproximou-se e abraçou-me pela primeira vez em muitos anos. Chorei nos braços dela como uma criança perdida.
Agora escrevo esta história porque sei que há muitas mães como eu: mulheres que deram tudo o que tinham e mesmo assim sentem que falharam. Será possível recuperar o tempo perdido? Ou há feridas que nunca saram? O que é ser mãe quando já não sabemos como chegar aos nossos filhos?