Desalento: O Terreno Que Dei e a Ruptura Familiar Que Causou

— Não podes fazer isso, Mariana! — gritei, a voz embargada, enquanto via a minha nora fechar a porta da sala com um estrondo. O eco do gesto ficou a pairar na casa, misturando-se com o cheiro a café frio e a tristeza que já era habitual desde que o António partiu. Três anos. Três anos de silêncio, de jantares para um, de conversas com fotografias e de cartas nunca enviadas.

Nunca pensei que o maior vazio não fosse o da ausência dele, mas o da distância crescente entre mim e o meu próprio filho. O João sempre foi o meu orgulho — trabalhador, honesto, um homem à moda antiga, como o pai. Quando casou com a Mariana, senti um misto de alegria e receio. Ela era diferente de nós: mais ambiciosa, mais prática, menos dada a sentimentalismos. Mas tentei recebê-la como filha. Talvez por isso, quando decidi dar-lhes aquele terreno em Vila Nova, o fiz com o coração aberto, esperando que ali construíssem um lar, uma família, uma continuidade do que eu e o António começámos.

Lembro-me do dia em que lhes entreguei a escritura. O João abraçou-me com força, os olhos húmidos. A Mariana sorriu, agradeceu educadamente, mas vi-lhe no olhar uma inquietação. — É uma responsabilidade grande, dona Teresa — disse ela. — Não é responsabilidade, é amor — respondi-lhe. E acreditei nisso.

Durante meses sonhei com a casa que eles iriam construir ali. Imaginava os risos das crianças no quintal, os almoços de domingo ao sol, as oliveiras antigas a testemunhar novas histórias. Mas as visitas ao terreno eram cada vez menos frequentes. O João falava em dificuldades financeiras, em projetos adiados. A Mariana evitava o assunto.

Até ao dia em que ouvi a conversa deles na cozinha:

— João, precisamos mesmo de vender. Não faz sentido ficarmos presos a um terreno que não vamos usar. A tua mãe vai compreender.
— Não sei… Ela deu-nos aquilo com tanto carinho.
— Carinho não paga contas! — respondeu ela, seca.

Senti-me gelar por dentro. Espreitei pela porta entreaberta e vi o João cabisbaixo, a Mariana de braços cruzados. Fui para o quarto antes que me vissem. Chorei baixinho, como tantas vezes desde que fiquei viúva.

No domingo seguinte, durante o almoço, tentei abordar o assunto:

— Então, já pensaram no que vão fazer com o terreno?
A Mariana pousou os talheres devagar.
— Teresa… estamos a pensar vender. Precisamos do dinheiro para pagar dívidas e talvez comprar um apartamento mais perto do trabalho.
O João não me olhou nos olhos.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Dei-vos aquele terreno para construírem uma vida juntos! Era do vosso avô! Não é só terra… é história!
A Mariana suspirou.
— Compreendo, mas temos de pensar no nosso futuro.

O resto do almoço foi um silêncio pesado. Quando se foram embora, fiquei sozinha na sala, rodeada pelas memórias dos que já partiram e pela sensação amarga de ter perdido mais do que um pedaço de terra.

Os dias seguintes foram um tormento. O João ligava menos. A Mariana deixou de responder às minhas mensagens. Os vizinhos começaram a comentar:

— Ouvi dizer que o teu filho vai vender o terreno…
— Que desilusão…

A vergonha misturava-se com a tristeza. Comecei a duvidar de mim própria: teria sido egoísta? Estaria a prender o João ao passado? Mas depois lembrava-me do António: “A família é tudo”, dizia ele sempre.

Uma tarde, bati à porta deles sem avisar. A Mariana abriu:
— Teresa… não esperávamos visita.
— Precisamos de conversar — disse eu, firme.
O João apareceu na sala, nervoso.

— Mãe…
— Só quero entender porquê. Porquê vender algo que vos dei com tanto amor?
A Mariana olhou-me nos olhos:
— Porque não temos outra escolha! O João perdeu horas no trabalho, eu estou com contratos precários… Não podemos dar-nos ao luxo de manter um terreno parado enquanto lutamos para pagar as contas!
O João tentou intervir:
— Mãe…
Mas eu já estava a chorar.

— Não percebem? Sinto-me traída! Dei-vos parte da nossa história e vocês querem livrar-se dela como se fosse um fardo!
A Mariana levantou-se:
— Não é isso! Mas não podemos viver só de memórias!

Saí dali sem olhar para trás. Durante semanas não lhes falei. O Natal aproximava-se e a casa parecia ainda mais vazia. Os enfeites continuavam na caixa; não tive coragem de os pendurar sozinha.

No dia 24, ouvi bater à porta. Era o João, sozinho.
— Mãe… desculpa. Sei que estás magoada. Mas preciso que entendas: estamos a tentar sobreviver. Não é falta de gratidão…
Sentei-me ao lado dele no sofá onde tantas vezes me sentei com o António.

— Sinto-me tão sozinha desde que ele partiu… Só queria ver-vos felizes ali naquele terreno…
O João abraçou-me.
— Vamos sempre ser família, mãe. Mesmo sem aquele pedaço de terra.

Chorámos juntos naquela noite silenciosa. No dia seguinte, liguei à Mariana e pedi desculpa pelo tom duro das minhas palavras. Ela também pediu desculpa pela frieza dela. Não voltámos a falar do terreno durante muito tempo.

Acabaram por vendê-lo meses depois. Com o dinheiro compraram um pequeno apartamento em Matosinhos e começaram uma nova vida. Eu continuei na casa grande em Vila Nova, rodeada pelas memórias e pelas oliveiras antigas.

Às vezes pergunto-me se fiz bem em dar-lhes aquele terreno ou se devia ter guardado para mim — ou para os netos que talvez nunca venha a ter. Mas depois penso: será que o amor se mede em pedaços de terra? Ou será que é nas escolhas difíceis que se vê até onde vai o laço da família?

E vocês? Já sentiram que perderam algo importante para manter quem amam por perto? O que fariam no meu lugar?