Depois da Morte do Meu Irmão, Fiquei Só com as Memórias

— Não tens direito a nada, Inês. Foi o que ficou escrito. — A voz da minha cunhada, Teresa, ecoava fria pela sala, enquanto eu olhava para a mesa onde o testamento do meu irmão Miguel repousava, como uma sentença. O advogado nem me olhava nos olhos. A minha mãe, sentada num canto, torcia as mãos no avental, os olhos vermelhos de tanto chorar.

Senti o chão fugir-me dos pés. O Miguel sempre foi tudo para mim. Seis anos mais velho, protetor, cúmplice. Quando caí da bicicleta e esfolei o joelho, foi ele quem me carregou às costas até casa. Quando o pai gritava, era ele quem me abraçava e sussurrava: “Não tenhas medo, eu estou aqui.”

Agora, ele já não estava. Um acidente de carro numa madrugada chuvosa levou-o sem aviso. E com ele levou a única pessoa que me fazia sentir vista nesta família.

— Não é justo — murmurei, sem conseguir conter as lágrimas. — O Miguel nunca teria deixado isto acontecer.

Teresa encolheu os ombros, fria como sempre. — O Miguel confiou em mim. E tu… tu tens a tua vida.

A minha vida? Olhei à volta: um quarto alugado num bairro antigo de Lisboa, um emprego precário numa livraria que mal pagava as contas e agora… um velho álbum de fotografias que a Teresa me atirou para as mãos como se fosse lixo.

— Fica com isso. É só tralha — disse ela antes de sair, batendo a porta.

A minha mãe não disse nada. Limitou-se a olhar para mim com aquele olhar vazio de quem já desistiu de lutar.

Fiquei ali sentada, sozinha, com o álbum no colo. Passei os dedos pelas capas gastas e abri na primeira página: Miguel e eu na praia da Nazaré, ele com os braços à volta dos meus ombros, ambos a rir de boca aberta. Lembrei-me do cheiro do mar, do calor do sol na pele, das gargalhadas que só nós dois entendíamos.

Como é que tudo se perdeu assim?

Os dias seguintes foram um borrão de silêncio e mágoa. A Teresa mudou as fechaduras da casa dos meus pais — agora dela — e proibiu-me de entrar. A minha mãe foi viver para um lar em Setúbal. Eu fiquei com as recordações e um vazio impossível de preencher.

No trabalho, a Ana reparou nos meus olhos inchados.

— Inês, queres falar?

Abanei a cabeça. Como explicar que perdi o meu irmão e, com ele, toda a minha história?

À noite, voltava para casa e folheava o álbum. Cada fotografia era uma punhalada: nós dois no jardim da avó Rosa; o Miguel no primeiro dia de escola; eu no colo dele quando fiz cinco anos. Senti raiva da Teresa por me ter roubado tudo — não só a casa ou os objetos, mas também o direito de pertencer àquela família.

Uma noite, bati à porta do lar onde estava a minha mãe. Ela parecia mais pequena, encolhida numa cadeira junto à janela.

— Mãe… — comecei, mas ela desviou o olhar.

— Não devias ter vindo — murmurou. — A Teresa não gosta.

— E tu? — perguntei, sentindo a voz tremer. — Gostas?

Ela não respondeu. Ficámos em silêncio até que uma enfermeira entrou e me pediu para sair.

Na rua, sentei-me num banco e chorei como uma criança perdida.

O tempo passou devagar. No Natal, tentei ligar à Teresa para saber se podia visitar a casa da família. Ela não atendeu. Enviei mensagens à minha mãe; nenhuma resposta.

No Ano Novo, sentei-me sozinha no meu quarto com uma taça de vinho barato e o álbum aberto no colo. Olhei para uma fotografia em que o Miguel me ensinava a andar de bicicleta. Lembrei-me das palavras dele: “Não tenhas medo.”

Mas eu tinha medo. Medo de desaparecer da memória da minha própria família.

Um dia, ao sair do trabalho, vi a Teresa na rua com um homem que não conhecia. Riam-se juntos, cúmplices. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Decidi segui-los discretamente até um café perto do Rossio. Sentei-me numa mesa ao fundo e ouvi fragmentos da conversa:

— …a casa está quase vendida — dizia ela ao homem. — Com o dinheiro vou finalmente poder viajar.

O sangue ferveu-me nas veias. A casa dos meus pais! O jardim onde plantei as minhas primeiras flores! Tudo vendido como se fosse apenas mais um negócio.

Naquela noite não dormi. Escrevi uma carta à Teresa:

“Sei que não tenho direitos legais, mas peço-te que me deixes ir à casa uma última vez antes de venderes tudo. Preciso despedir-me.”

Ela respondeu com uma mensagem curta: “Vem amanhã às 10h.”

Cheguei cedo demais. O portão estava enferrujado; o jardim cheio de ervas daninhas. Entrei devagar, tocando nas paredes como quem toca numa ferida aberta.

No meu antigo quarto ainda estava colada na parede uma estrela fosforescente que o Miguel me deu quando fiz oito anos. Sentei-me na cama e chorei baixinho.

A Teresa apareceu à porta:

— Já viste tudo? Tenho pressa.

Olhei para ela, tentando encontrar algum vestígio da mulher que o meu irmão amou. Só vi frieza e impaciência.

— Porque é que me odeias tanto? — perguntei num sussurro.

Ela hesitou um segundo antes de responder:

— Sempre foste a preferida do Miguel. Ele falava sempre de ti… Eu nunca fui suficiente para ele enquanto tu existisses.

Fiquei sem palavras. Saí da casa sem olhar para trás.

Nos meses seguintes tentei reconstruir-me aos poucos. Comecei a escrever sobre o Miguel: pequenas histórias da nossa infância, cartas que nunca lhe enviei. Publiquei algumas num blogue anónimo; recebi mensagens de desconhecidos que diziam sentir a mesma dor da perda e do esquecimento familiar.

Um dia recebi uma carta manuscrita da minha mãe:

“Inês,
Desculpa por tudo o que não consegui ser para ti depois do Miguel partir. Sinto falta dos dois todos os dias.”

Chorei ao ler aquelas palavras simples mas verdadeiras.

Hoje continuo sozinha na cidade grande, mas já não sou invisível para mim mesma. Guardo o álbum como um tesouro e escrevo para manter viva a memória do meu irmão e daquilo que fomos juntos.

Às vezes pergunto-me: quantos de nós ficam presos entre memórias e silêncios familiares? Será que algum dia conseguimos mesmo voltar a pertencer a algum lugar?