Depois do Adeus: Entre o Silêncio e o Recomeço

– Já não consigo, Marta. Preciso de mudar. Preciso de outra vida.

As palavras dele ecoaram na minha cabeça como um trovão abafado. Estávamos sentados à mesa da cozinha, as luzes baixas, os miúdos já deitados. O Rui não levantou a voz, não bateu com a porta. Limitou-se a olhar-me nos olhos, com aquele ar cansado que eu já conhecia tão bem. Mas nunca pensei que fosse cansaço de mim.

– Outra vida? – perguntei, a voz falhando-me. – O que é que isso quer dizer?

Ele suspirou, desviando o olhar para a chávena de chá que já arrefecera.

– Não sei explicar. Sinto-me preso. Sinto que estou a perder-me aqui.

Fiquei ali sentada, imóvel, enquanto ele se levantava e ia buscar o casaco. Não houve discussão. Não houve lágrimas dele. Só um silêncio pesado, como se o mundo tivesse parado de girar.

Naquela noite não dormi. Fiquei a ouvir o tic-tac do relógio da sala, o som do vento lá fora e os meus próprios pensamentos aos gritos dentro da cabeça. Como é que se chega aqui? Como é que duas pessoas que partilharam tudo durante quinze anos acabam assim, sem sequer uma última discussão?

No dia seguinte, o Rui saiu cedo. Disse aos miúdos que ia trabalhar mais cedo do que o costume. Não lhes disse nada. Eu também não consegui. O João, com oito anos, percebeu logo que algo estava errado.

– Mãe, o pai está chateado contigo?

Apertei-o contra mim e menti.

– Não, meu amor. Só está cansado.

Os dias seguintes foram uma sucessão de rotinas automáticas: acordar os miúdos, preparar pequenos-almoços apressados, correr para a escola, apanhar o autocarro para o escritório em Benfica. O Rui vinha buscar as coisas dele aos poucos, sempre quando eu não estava. Deixou-me com as contas da casa, o crédito do apartamento em Carnide e dois filhos pequenos que perguntavam todos os dias pelo pai.

A minha mãe ligava-me todos os dias.

– Marta, tens de ser forte. Os miúdos precisam de ti.

Mas eu não queria ser forte. Queria era desaparecer dentro das mantas, fechar os olhos e acordar noutro tempo, noutro lugar. A minha irmã Inês vinha cá aos fins-de-semana ajudar-me com as compras e a roupa. Mas eu via nos olhos dela aquele misto de pena e julgamento.

– Sempre achei que o Rui era demasiado calado – dizia ela. – Nunca se sabe o que vai na cabeça das pessoas.

O pior era à noite. Quando a casa finalmente se calava e eu ficava sozinha com os meus pensamentos e o eco das palavras dele: “Preciso de outra vida”. Que vida era essa? Uma sem mim? Sem os filhos?

Comecei a perder peso sem dar por isso. Esquecia-me de comer. No trabalho, a minha chefe reparou.

– Marta, estás bem? Precisas de uns dias?

Mas eu não podia parar. Se parasse, tudo desmoronava: as contas, a escola dos miúdos, o supermercado. O salário mal chegava para tudo. O Rui transferia uma pensão pequena – “o que posso dar neste momento”, dizia ele por mensagem – mas não chegava para metade das despesas.

Uma noite, depois de deitar os miúdos, sentei-me no sofá e chorei baixinho para não me ouvirem. Senti-me tão sozinha como nunca antes na vida. Lembrei-me dos Natais em casa dos meus pais em Santarém, da mesa cheia de gente e risos altos. Agora só havia silêncio.

O João começou a ter pesadelos.

– Mãe, sonhei que o pai não voltava mais.

Abracei-o com força e prometi-lhe que tudo ia ficar bem. Mas nem eu acreditava nisso.

A minha sogra ligou-me uma vez:

– Marta, desculpa pelo meu filho. Ele sempre foi egoísta… Mas tu és forte, vais conseguir dar a volta.

Senti raiva dela, dele, do mundo inteiro por me terem deixado assim – sozinha com tudo às costas.

Os meses passaram devagarinho. O Rui arranjou outra casa em Oeiras e começou a ver os miúdos aos fins-de-semana alternados. Aparecia com presentes caros – consolas novas, ténis de marca – enquanto eu contava os trocos para pagar a luz e o gás.

Um dia explodi:

– Achas justo isto? Achas justo seres o pai divertido enquanto eu sou sempre a má da fita?

Ele encolheu os ombros.

– Não é fácil para mim também…

Ri-me amargamente.

– Não é fácil? Tu saíste! Foste tu que escolheste!

Ele ficou calado e foi-se embora sem dizer mais nada.

Comecei a ir à psicóloga do centro de saúde. A doutora Teresa ouvia-me em silêncio e fazia perguntas difíceis:

– O que é que quer para si agora, Marta?

Não sabia responder-lhe. Só queria sobreviver ao dia seguinte sem desabar à frente dos miúdos ou dos colegas do trabalho.

Aos poucos fui aprendendo a viver com o silêncio da casa vazia quando eles iam para o pai. Comecei a correr ao fim da tarde no parque da Quinta das Conchas para libertar a raiva e o medo. Conheci outras mães solteiras na escola do João – mulheres como eu, cansadas mas teimosas em não desistir.

Uma noite sentei-me à mesa da cozinha com a Inês e desabafei:

– Sinto-me invisível. Como se tivesse deixado de existir desde que ele saiu.

Ela pegou-me na mão:

– Tu existes mais do que nunca agora. És tu que manténs isto tudo de pé.

Chorei outra vez – mas desta vez foi um choro diferente: um choro de alívio por perceber que não estava completamente sozinha.

O tempo foi passando e as feridas foram cicatrizando devagarinho. Aprendi a pedir ajuda quando precisava – à minha mãe, à Inês, às amigas novas da escola dos miúdos. Aprendi a aceitar que nem sempre consigo ser tudo para todos e que está tudo bem em falhar às vezes.

O João fez nove anos numa festa simples em casa – bolo feito por mim, balões comprados no chinês da esquina e muitos risos à volta da mesa da cozinha onde tudo tinha começado e acabado ao mesmo tempo.

Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que ficou sentada naquela noite à espera de respostas que nunca vieram. Ainda tenho medo do futuro – das contas por pagar, dos filhos magoados, do silêncio das noites em branco – mas já não deixo que esse medo me paralise.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres há por aí sentadas à mesa da cozinha com o coração partido e um mundo inteiro às costas? E será que algum dia aprendemos mesmo a respirar outra vez depois do silêncio?