Arrependimento no Peito: Entre o Passado e o Presente

— Vais mesmo sair agora, Miguel? — A voz da Inês ecoou pela cozinha, embargada, enquanto eu calçava os sapatos à pressa. O relógio marcava quase meia-noite e a chuva batia com força nos vidros. O cheiro do café frio misturava-se ao perfume doce dela, espalhado pela casa como um lembrete do que tínhamos — ou do que fingíamos ter.

Não respondi de imediato. O telemóvel vibrava no bolso, uma mensagem da Sofia: “O Tiago está doente. Precisas de vir.”

O nome dela ainda me fazia estremecer. Sofia. A mulher com quem partilhei dez anos de vida, a mãe do meu filho. Troquei-a por uma paixão fulminante, por promessas de juventude e recomeço ao lado da Inês, dez anos mais nova. Agora, sentado entre duas vidas, sentia-me um impostor em ambas.

— Miguel, fala comigo! — insistiu Inês, os olhos brilhando de lágrimas. — Sempre que ela te chama, tu vais. E eu? O que sou eu para ti?

A raiva dela era justa. Eu sabia disso. Mas como explicar-lhe que o passado nunca morre? Que o amor antigo não se apaga com um novo beijo? Que o riso do Tiago me perseguia nos sonhos e o olhar magoado da Sofia me assombrava nos dias mais felizes?

— Inês, o Tiago está doente. Preciso de ir — murmurei, evitando o olhar dela.

Ela riu-se, amarga.

— Sempre o Tiago… Sempre a Sofia… E eu? Fico aqui à espera que decidas se queres mesmo esta vida comigo?

Saí antes que ela dissesse mais. A chuva gelada caiu-me nos ombros como um castigo merecido. No carro, liguei o motor e deixei-me levar pelas ruas vazias de Lisboa, cada semáforo vermelho uma oportunidade para voltar atrás — mas nunca voltava.

Quando cheguei ao prédio da Sofia, hesitei antes de tocar à campainha. Lembrei-me da última vez que estive ali: a discussão, os gritos abafados para não acordar o Tiago, as malas feitas à pressa. “Vai-te embora, Miguel! Se é isso que queres… vai!” E eu fui. Fui porque achei que merecia mais. Porque a Inês me fazia sentir vivo outra vez.

Agora ali estava eu, a tremer como um miúdo apanhado numa mentira.

A porta abriu-se devagar. Sofia estava de robe, olheiras fundas e cabelo preso num coque desfeito.

— Ele está no quarto — disse apenas, sem me olhar nos olhos.

Passei por ela em silêncio. O Tiago dormia agitado, a testa quente e húmida. Sentei-me na beira da cama e segurei-lhe a mão pequenina.

— Papá… — murmurou ele, meio a sonhar.

O coração apertou-se-me no peito. Como pude pensar que podia ser feliz longe disto? Longe dele?

Sofia encostou-se ao batente da porta.

— Não precisavas de vir — disse baixinho. — Mas obrigada por teres vindo.

Olhei para ela. O rosto cansado, mas ainda tão familiar. Lembrei-me das noites em que ficávamos acordados a falar sobre tudo e nada, dos planos para viajar pelo Douro, das tardes de domingo no parque com o Tiago a correr atrás dos pombos.

— Sinto falta disto — confessei sem pensar.

Ela suspirou.

— Tu é que foste embora, Miguel. Eu tentei… tentei tanto segurar-nos. Mas tu já tinhas ido antes de fazeres as malas.

Ficámos em silêncio. O som da chuva era agora um pano de fundo para tudo o que não sabíamos dizer.

— A Inês sabe que estás aqui? — perguntou ela por fim.

Assenti com um gesto vago.

— Ela está magoada… Eu também estou perdido.

Sofia aproximou-se e sentou-se na ponta da cama.

— Achaste mesmo que ias encontrar felicidade fugindo do que eras? Do que somos?

Não soube responder. A verdade é que nunca deixei de amar a Sofia — mas também amava a Inês à minha maneira. Ou talvez amasse apenas a ideia de recomeçar.

Na manhã seguinte, acordei com o Tiago aninhado ao meu lado. Sofia preparava café na cozinha. Por um momento, tudo parecia igual ao passado — mas era só uma ilusão cruel.

Ao sair, cruzei-me com a vizinha do lado, Dona Amélia.

— Já não o via por aqui há muito tempo, Miguel… — disse ela com um sorriso triste. — Não deixe o menino sentir a sua falta.

As palavras dela ficaram-me na cabeça durante todo o caminho de volta para casa da Inês. Quando cheguei, encontrei-a sentada no sofá, olhos vermelhos e uma mala feita aos pés.

— Não sei se consigo mais isto — disse ela antes que eu abrisse a boca. — Não quero ser sempre a segunda escolha.

Sentei-me ao lado dela e tentei pegar-lhe na mão, mas ela afastou-se.

— Miguel… tu amas-me mesmo? Ou só tens medo de ficar sozinho?

A pergunta ficou suspensa no ar como uma sentença.

— Eu amo-te… mas também amo o Tiago e a Sofia faz parte da minha vida — tentei explicar.

Ela abanou a cabeça.

— Não é suficiente para mim. Quero alguém inteiro, não metade de um homem dividido entre duas casas.

O silêncio instalou-se entre nós como uma parede intransponível.

Durante dias vivi num limbo: passava as noites com a Inês e os dias preocupado com o Tiago; respondia às mensagens da Sofia com frases curtas e evitava olhar-me ao espelho. No trabalho, os colegas notavam o meu ar ausente; até o chefe me chamou à parte:

— Está tudo bem em casa, Miguel?

Sorri sem convicção e disse que sim. Mas nada estava bem.

Uma noite, depois de mais uma discussão com a Inês sobre as minhas ausências e silêncios, saí para caminhar pelas ruas molhadas do bairro. Sentei-me num banco de jardim e chorei como há muito não chorava. Senti-me pequeno, egoísta e perdido.

No dia seguinte tomei uma decisão: precisava de falar com ambas, ser honesto pela primeira vez em meses.

Encontrei-me com a Sofia num café perto do trabalho dela.

— Preciso de saber se ainda há espaço para mim na vossa vida — disse-lhe sem rodeios.

Ela olhou-me nos olhos durante longos segundos antes de responder:

— Miguel… eu já não sou a mesma mulher que tu deixaste. Aprendi a viver sem ti. O Tiago precisa de ti como pai… mas eu não sei se consigo voltar a confiar em ti como marido.

As palavras dela doeram mais do que esperava — mas eram justas.

À noite sentei-me com a Inês na sala escura do nosso apartamento alugado.

— Não quero continuar assim — disse-lhe. — Não é justo para ti nem para mim. Preciso de tempo para perceber quem sou e o que quero realmente.

Ela chorou em silêncio enquanto eu fazia as malas desta vez — não por paixão ou aventura, mas por respeito ao que restava de nós dois.

Voltei para casa dos meus pais em Almada durante umas semanas. O meu pai olhava-me com reprovação silenciosa; a minha mãe tentava consolar-me com comida quente e frases feitas:

— A vida é feita de escolhas difíceis, filho…

Passei os dias entre visitas ao Tiago e longas caminhadas à beira Tejo. Aos poucos percebi que não podia reconstruir o passado nem viver eternamente dividido entre dois amores.

Um domingo à tarde levei o Tiago ao parque e sentei-me com ele na relva enquanto ele brincava com outros miúdos.

— Papá vai estar sempre aqui para ti — prometi-lhe baixinho.

Ele sorriu sem perceber o peso das minhas palavras.

Hoje vivo sozinho num pequeno apartamento em Lisboa. Vejo o Tiago todos os fins-de-semana; falo com a Sofia sobre as coisas importantes da vida dele; troco mensagens cordiais com a Inês de vez em quando. Ainda sinto falta do que perdi — mas aprendi que fugir nunca apaga as feridas antigas; só as torna mais profundas.

Às vezes pergunto-me: será possível amar duas pessoas ao mesmo tempo sem magoar ninguém? Ou será que no fim todos pagamos um preço alto pelas escolhas feitas no calor do momento?

E vocês? Já sentiram este peso no peito? Como se recomeça quando já se partiu tudo?