O Nome do Meu Neto: Entre Tradição e Amor
— Não, Maria, não faz sentido! O nome do meu filho não vai ser Joaquim! — A voz da Ana ecoou pela sala, firme, quase cortante. Senti o sangue gelar-me nas veias. Joaquim era o nome do meu pai, do meu avô, do meu bisavô. Em nossa família, todos os rapazes carregavam esse nome, como um fio invisível que nos ligava ao passado.
Olhei para o meu filho, o Pedro, sentado no sofá, com as mãos entrelaçadas, o olhar perdido no tapete. Ele sempre fora o elo mais frágil entre mim e a Ana. Desde que se casaram, percebi que ela tinha ideias muito próprias, mas nunca imaginei que chegaria ao ponto de desafiar uma tradição centenária.
— Ana, por favor… — tentei controlar a voz trémula — Não percebes o quanto isto significa para mim? Para nós? O Joaquim não é só um nome. É a nossa história. É o respeito pelos que vieram antes.
Ela suspirou, cruzando os braços.
— Maria, eu respeito a vossa história. Mas este filho também é meu. E eu não quero que ele cresça com um nome que não lhe diz nada. Quero que ele tenha um nome só dele, que seja nosso.
Senti-me traída. Como podia ela falar assim? O Pedro levantou-se devagar e pousou uma mão no ombro dela.
— Mãe… — começou ele, hesitante — Eu compreendo o que sentes. Mas também percebo a Ana. Talvez possamos encontrar um meio-termo.
Meio-termo? Como se houvesse meio-termo quando se trata da honra da família! Lembrei-me do meu pai, sentado à mesa da cozinha, a contar histórias de quando era miúdo em Trás-os-Montes. Lembrei-me do orgulho com que me apresentou ao avô Joaquim no dia do meu batizado. E agora… agora tudo isso ia acabar porque a minha nora achava o nome «antiquado»?
Os dias seguintes foram um tormento. A notícia espalhou-se pela família como fogo em palha seca. A minha irmã Rosa ligou-me logo na manhã seguinte.
— Então, já escolheste o fatinho para o batizado do Joaquimzinho?
Engoli em seco.
— Ainda não sei se vai ser Joaquim…
O silêncio do outro lado foi pesado.
— Não me digas que a Ana está a fazer das dela…
— Ela quer outro nome.
— Mas tu não vais deixar! — exclamou ela, indignada.
Como explicar à Rosa que eu já não mandava nada? Que tudo aquilo que sempre tomei por garantido estava agora em risco?
As semanas passaram e a tensão foi crescendo. Cada vez que visitava o Pedro e a Ana, sentia-me uma estranha na minha própria família. A barriga dela crescia e eu sentia o tempo a fugir-me das mãos. Uma tarde, sentei-me com o Pedro na varanda enquanto a Ana descansava no quarto.
— Filho… — comecei, tentando não chorar — Tu sabes o quanto isto me custa. O teu avô ficaria tão feliz…
Ele olhou para mim com ternura.
— Mãe, eu sei. Mas também tens de perceber que os tempos mudaram. A Ana sente-se sufocada com tanta pressão. E eu… eu só quero paz na minha família.
Paz? Como podia haver paz quando sentia o chão a fugir-me dos pés? Comecei a evitar falar do assunto, mas cada vez que via uma roupinha de bebé com as iniciais «J.Q.» bordadas — presente da tia Laurinda — sentia uma pontada no peito.
O dia do nascimento chegou numa manhã chuvosa de novembro. Esperei horas na sala de espera do hospital de Santa Maria, as mãos geladas de nervosismo. Quando finalmente vi o Pedro sair do elevador com um sorriso cansado, corri para ele.
— Então? — perguntei, ansiosa — Já nasceu?
Ele assentiu.
— É um rapazinho lindo, mãe.
Senti as lágrimas escorrerem-me pelo rosto.
— E… o nome?
Ele hesitou por um segundo.
— Vai chamar-se Tomás.
Tomás. O nome caiu-me como uma pedra no estômago. Senti-me traída, humilhada, como se todo o meu esforço para manter viva a memória dos meus antepassados tivesse sido em vão.
Nos dias seguintes, recusei-me a visitar o hospital. Fiquei em casa, fechada no quarto, rodeada de fotografias antigas e cartas amareladas pelo tempo. A minha irmã Rosa veio bater-me à porta.
— Maria, não podes continuar assim! O menino precisa de ti!
— Ele não precisa de mim — respondi amargamente — Nem sequer tem o nome da família!
Ela sentou-se ao meu lado e pegou-me na mão.
— Olha para mim. Achas que o teu pai ficaria feliz por te ver assim? Achas que ele queria que perdesses o amor do teu neto por causa de um nome?
Chorei como há muito não chorava. No fundo sabia que ela tinha razão, mas como aceitar aquilo?
Quando finalmente decidi visitar o Tomás, ele já tinha quase um mês. Entrei devagarinho no quarto dele e vi-o dormir no berço, tão pequeno e indefeso. A Ana olhou para mim com olhos cansados mas sinceros.
— Maria… obrigada por vires.
Aproximei-me do berço e toquei-lhe na mãozinha minúscula. Senti uma onda de ternura invadir-me o peito. Pela primeira vez desde o início daquele pesadelo, percebi que talvez estivesse a perder algo mais importante do que uma tradição: estava a perder a oportunidade de amar aquele menino pelo que ele era, não pelo nome que trazia.
A Ana aproximou-se e pousou uma mão no meu ombro.
— Sei que isto foi difícil para ti. Mas prometo-te: vou ensinar ao Tomás tudo sobre os teus pais e os teus avós. Ele vai saber quem foi o Joaquim.
Olhei para ela e vi nos seus olhos uma honestidade desarmante. Talvez fosse possível honrar os nossos sem lhes impor um fardo tão pesado.
Hoje olho para o Tomás a brincar no tapete da sala e pergunto-me: quantas vezes deixamos que as tradições nos afastem daqueles que mais amamos? Será que vale mesmo a pena perder momentos preciosos por causa de um nome? E vocês… até onde iriam para defender uma tradição familiar?