Entre o Ontem e o Amanhã: O Dilema de uma Mãe Portuguesa
— Mãe, não podes continuar assim! — gritou o Matias, com os olhos vermelhos de raiva e talvez de cansaço. — Esta casa está a cair aos bocados, e tu recusas-te a ver!
Fiquei parada no meio da cozinha, as mãos ainda húmidas da loiça que lavava. O cheiro do café requentado misturava-se com o bolor das paredes antigas. Olhei para ele, para aquele rapaz que eu criei sozinha desde que o António nos deixou, e senti uma dor funda no peito. Não era só a casa que estava a desmoronar-se; era também o pouco que restava de mim.
— Não fales assim comigo, Matias — respondi, tentando manter a voz firme. — Esta casa é tudo o que tenho. Aqui vivi com os meus pais, aqui tu deste os teus primeiros passos…
Ele passou as mãos pelo cabelo, impaciente. — E agora vais ficar aqui até quando? Até as paredes caírem em cima de ti? Eu já te disse: vem comigo para Lisboa. Lá tens tudo o que precisas. Eu arranjo-te um quarto perto do meu apartamento, conheces gente nova…
Suspirei. Lisboa. Para ele, era a promessa de futuro; para mim, era só ruído, pressa e solidão. Não lhe disse isso. Em vez disso, olhei para a janela, onde a chuva batia devagarinho, como se chorasse por mim.
— Não percebes, pois não? — sussurrei. — Aqui está a minha vida inteira.
Ele virou-se de costas, frustrado. — A tua vida inteira já não existe, mãe! O pai morreu há vinte anos, os teus irmãos emigraram para França… Ficaste sozinha nesta aldeia fantasma. Até quando vais continuar a fingir que nada mudou?
As palavras dele eram facas. Senti-as cortar cada memória que guardava: as festas de São João no largo da igreja, os serões à lareira com os meus pais, o cheiro do pão acabado de cozer no forno comunitário. Tudo isso parecia tão distante agora.
— E tu? — perguntei, baixinho. — Porque queres tanto que eu vá contigo? Tens medo de ficar sozinho?
Matias hesitou. Vi-lhe nos olhos uma sombra de culpa. — Não é isso… Só quero o melhor para ti.
Mas eu sabia que havia mais. Desde que ele se separou da Ana Rita, andava inquieto. A cidade não lhe dava paz; talvez procurasse em mim um porto seguro que já não existia nem para mim própria.
Naquela noite, depois de ele sair batendo a porta, sentei-me na sala escura. O relógio da parede marcava as horas com um tique-taque lento e pesado. Peguei numa fotografia antiga: eu e o António no dia do nosso casamento, sorridentes à porta desta mesma casa.
As lágrimas vieram sem aviso. Senti-me perdida entre o ontem e o amanhã, incapaz de escolher um caminho sem trair quem fui ou quem ainda podia ser.
No dia seguinte, fui ao café da dona Emília. As conversas eram sempre as mesmas: o preço do azeite, o filho da vizinha que foi trabalhar para Inglaterra, a chuva que não dava tréguas.
— Então, Maria do Céu — perguntou a dona Emília —, ouvi dizer que o teu Matias quer levar-te para Lisboa.
Assenti com um sorriso amarelo.
— E vais?
Olhei para ela e vi nos seus olhos a mesma dúvida que me consumia.
— Não sei… Tenho medo de perder tudo isto.
Ela pousou a mão na minha. — Às vezes é preciso perder para ganhar outra coisa qualquer.
Saí dali mais confusa ainda. No caminho para casa, cruzei-me com o senhor Joaquim, vizinho de sempre.
— Bom dia, Maria do Céu! Já soube das novidades? Parece que vão fechar o centro de saúde…
Mais uma perda. Mais um pedaço da aldeia arrancado pela raiz.
À noite, Matias voltou. Trazia um saco com pão fresco e um ramo de flores silvestres.
— Desculpa por ontem — murmurou. — Não devia ter gritado contigo.
Sentei-me à mesa com ele. O silêncio era pesado.
— Sabes — comecei —, tenho medo de ir contigo e não me adaptar. Tenho medo de ser um peso para ti.
Ele pegou na minha mão.
— Nunca serias um peso. Só quero que sejas feliz…
Ficámos ali muito tempo sem dizer nada. Ouviam-se apenas os grilos lá fora e o vento a bater nas portadas.
Nos dias seguintes tentei imaginar-me em Lisboa: ruas cheias de gente apressada, prédios altos sem alma, supermercados onde ninguém cumprimenta ninguém. E depois pensava na minha casa: as paredes cheias de fotografias antigas, o cheiro da terra molhada depois da chuva, os vizinhos que me conhecem desde criança.
Uma tarde, enquanto limpava o sótão, encontrei uma caixa cheia de cartas do António. Li-as uma a uma, sentindo-lhe a voz nas palavras escritas à pressa durante os meses em Angola.
“Maria do Céu,
Se algum dia tiveres de escolher entre ficar ou partir,
escolhe sempre aquilo que te faz sentir viva.”
Chorei como há muito não chorava.
No domingo seguinte houve missa na igreja. Sentei-me no banco de trás e rezei por uma resposta. No final da missa, a dona Emília aproximou-se:
— Já decidiste?
Abanei a cabeça.
— Tenho medo de perder quem sou.
Ela sorriu tristemente.
— Às vezes é preciso coragem para sermos nós próprios noutro lugar.
Nessa noite chamei o Matias à cozinha.
— Filho… Se eu for contigo, prometes que não me deixas sozinha?
Ele abraçou-me com força.
— Prometo.
No dia em que deixei a casa onde vivi toda a minha vida, olhei uma última vez para as paredes gastas pelo tempo e para o jardim onde plantei roseiras com a minha mãe. Senti um nó na garganta e uma vontade imensa de voltar atrás. Mas segui em frente.
Agora estou em Lisboa há três meses. Ainda estranho os barulhos da cidade e sinto falta do cheiro da terra molhada depois da chuva. Mas às vezes acordo e vejo o Matias a preparar café na cozinha pequena do nosso novo apartamento e penso: talvez haja espaço para novas memórias.
Mas será que alguma vez deixamos verdadeiramente para trás quem fomos? Ou carregamos connosco todos os lugares onde já fomos felizes?