A Casa Que O Meu Coração Construiu: O Diário de Um Pai Português Que Nunca Desistiu
— Não chores, Inês. O pai está aqui, prometo que vai correr tudo bem. — A minha voz tremia, mas forcei um sorriso enquanto abraçava a minha filha de oito anos. O Miguel, mais velho, olhava-me com aqueles olhos castanhos, tão parecidos aos da mãe, cheios de perguntas que eu não sabia responder.
Era uma noite fria de janeiro em Lisboa. O vento batia nas janelas do carro velho onde nos abrigávamos. A casa onde vivíamos tinha sido vendida pelo banco. Desde que a Ana partiu, tudo desabou. Primeiro foi o emprego — despedimento coletivo na fábrica de cerâmica. Depois, as contas acumularam-se. E agora, nem casa tínhamos.
— Pai, amanhã posso ir à escola? — perguntou o Miguel, baixinho.
Engoli em seco. Não tinha coragem para lhe dizer que não sabia se conseguiria levá-lo. Não queria que sentissem vergonha, mas como esconder a nossa situação? O cheiro a humidade no carro, as mochilas servindo de almofada…
No dia seguinte, bati à porta da minha irmã, Teresa. Ela abriu com um olhar desconfiado.
— Manuel? O que fazes aqui a esta hora?
— Preciso de ajuda, Teresa. Só por uns dias…
Ela olhou para trás, para o marido, o António, que bufou antes de se afastar.
— Não posso, Manuel. O António não quer confusão cá em casa. Já sabes como ele é…
Senti-me esmagado pela vergonha e pela raiva. A família que sempre ajudei virou-me as costas no momento em que mais precisei.
As noites seguintes foram um desfile de recusas e portas fechadas. Os meus pais estavam num lar em Setúbal e mal se lembravam de mim. Os amigos… cada um com os seus problemas.
Foi numa dessas noites que conheci o Sr. Joaquim, porteiro de um prédio antigo na Graça.
— Anda cá, rapaz — disse ele, ao ver-nos sentados num banco de jardim. — Não podes ficar aí com os miúdos ao frio.
Levou-nos para a arrecadação do prédio. Era pequena e cheirava a mofo, mas tinha um colchão e uma manta.
— Não é muito, mas é melhor que nada. — Sorriu com bondade.
A Inês adormeceu logo, exausta. O Miguel ficou acordado ao meu lado.
— Achas que a mãe nos vê lá de cima?
Apertei-o contra mim.
— Acho que sim, filho. E acho que está orgulhosa de nós.
Durante semanas vivi entre biscates: descarregar caixas no mercado da Ribeira, limpar escritórios à noite… Tudo para comprar pão e leite. A escola soube da nossa situação quando a Inês apareceu com o mesmo casaco roto três dias seguidos. Chamaram-me à diretora.
— Sr. Manuel, precisamos conversar sobre os seus filhos.
Expliquei tudo, com vergonha e lágrimas nos olhos. Pensei que me iam tirar as crianças. Mas a professora da Inês surpreendeu-me.
— Não está sozinho nisto. Vamos ajudar.
Organizaram um cabaz alimentar e arranjaram roupa para os miúdos. Uma assistente social visitou-nos na arrecadação e prometeu procurar uma solução melhor.
Mas nem tudo eram gestos de bondade. No bairro, começaram as conversas baixas:
— Olha ali o Manuel, coitado… — sussurravam as vizinhas.
O António, cunhado, cruzava-se comigo na rua e virava a cara.
Houve uma noite em que perdi as forças. Sentei-me no passeio e chorei como uma criança. Senti a mão pequenina da Inês na minha.
— Não chores, pai. Eu gosto muito de ti.
Essas palavras deram-me ânimo para continuar.
Finalmente, depois de meses de espera e burocracia, conseguimos um quarto numa pensão social em Chelas. Era minúsculo e partilhávamos a casa de banho com outras famílias, mas era um teto.
Aos poucos fui reconstruindo a vida. Arranjei trabalho fixo numa padaria graças ao Sr. Joaquim, que conhecia o dono. Os miúdos voltaram a sorrir — pouco a pouco — e eu também comecei a acreditar que era possível recomeçar.
Mas os conflitos familiares não desapareceram. No Natal desse ano, tentei reunir todos para uma ceia simples na pensão.
— Não faz sentido irmos aí — disse-me a Teresa ao telefone. — O António não quer misturas…
— Mas somos família! — gritei eu, desesperado.
— Tu é que te meteste nessa vida… — respondeu ela antes de desligar.
Senti raiva e tristeza misturadas. Como é possível alguém virar as costas ao próprio sangue?
No entanto, nesse Natal, os meus filhos fizeram-me um desenho: três bonecos de mãos dadas numa casa colorida.
— É a nossa casa nova — disse a Inês com um sorriso tímido.
Abracei-os com força e prometi-lhes ali mesmo:
— Enquanto eu viver, nunca vos vai faltar amor nem esperança.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que passámos: noites sem teto, portas fechadas por quem devia abrir os braços, humilhações… Mas também vejo gestos inesperados de bondade e coragem nos meus filhos pequenos.
Pergunto-me muitas vezes: quantos pais há por aí a lutar sozinhos? Quantas famílias vivem entre o orgulho ferido e a esperança teimosa? Será que algum dia aprendemos mesmo o valor da compaixão?