Entre o Amor e o Meu Filho: O Dia em que Tive de Escolher
— Não podes estar a falar a sério, Rui! — gritei, sentindo o chão fugir-me dos pés. O eco da minha voz atravessou a cozinha, onde o cheiro do café frio misturava-se com a tensão no ar. Ele olhou-me com aqueles olhos castanhos que tantas vezes me acalmaram, mas agora só transmitiam dureza.
— Estou, Sofia. Não consigo. Não quero ser pai. Ou eu, ou esse bebé. Decide.
Naquele instante, o mundo parou. O relógio na parede marcava 7h43, mas para mim o tempo deixou de existir. Senti as mãos tremerem e o coração bater tão forte que temi desmaiar. Como é que alguém que dizia amar-me podia pedir-me isto? O Rui, o meu Rui, com quem partilhei sonhos, viagens e promessas de eternidade, agora era um estranho.
Lembro-me de quando nos conhecemos, numa festa de São João no Porto. Ele fez-me rir com piadas sobre francesinhas e prometeu mostrar-me os melhores sítios para comer tripas à moda do Porto. Apaixonei-me pelo seu jeito descontraído e pela forma como me fazia sentir segura. Nunca imaginei que, cinco anos depois, estaríamos aqui, divididos por uma escolha impossível.
— Rui, por favor… — tentei, a voz embargada. — Este bebé é nosso. É fruto do nosso amor.
Ele desviou o olhar, fixando-se na janela embaciada pela chuva de novembro.
— Eu não estou preparado. Não quero esta responsabilidade. Se tu quiseres seguir com isso… não posso ficar.
As palavras dele cortaram-me como facas. Senti-me sozinha, abandonada antes mesmo de ser mãe. Lembrei-me da minha mãe, Maria do Carmo, que sempre dizia: “Filha, a vida é feita de escolhas difíceis.” Mas nunca pensei que teria de escolher entre o homem que amava e um filho que ainda nem conhecia.
Naquela noite, dormi no sofá. Ou melhor, tentei dormir. O Rui fechou-se no quarto e eu fiquei a olhar para o teto, ouvindo os sons da casa: o vento a bater nas janelas, o frigorífico a zumbir baixinho, e o silêncio ensurdecedor entre nós. Senti o bebé mexer-se pela primeira vez — um leve tremor, quase impercetível — e chorei baixinho para não acordar ninguém.
No dia seguinte, fui trabalhar como se nada fosse. Os meus colegas do escritório perguntaram se estava tudo bem e forcei um sorriso. Só a minha amiga Inês percebeu que algo não estava certo.
— Sofia, tu estás pálida… aconteceu alguma coisa?
Quis contar-lhe tudo ali mesmo, mas as palavras ficaram presas na garganta. Só consegui dizer:
— O Rui… ele não quer este bebé.
Ela abraçou-me sem dizer nada. Às vezes, não há palavras suficientes para consolar uma dor destas.
Durante semanas, tentei convencer o Rui. Mostrei-lhe ecografias, falei-lhe dos nomes que poderíamos escolher — Matilde se fosse menina, Tomás se fosse menino — mas ele mantinha-se irredutível.
— Não vou mudar de ideias, Sofia. Não quero ser pai agora. Se tu quiseres esse bebé, vais ter de te desenrascar sozinha.
A frieza dele magoava-me mais do que qualquer discussão. Comecei a questionar tudo: será que estava a ser egoísta? Será que conseguiria criar uma criança sozinha? E se ele tivesse razão? Mas cada vez que sentia o bebé mexer-se dentro de mim, sabia que não podia desistir.
A minha mãe foi a primeira pessoa a quem contei tudo.
— Filha, eu sempre te disse: os homens vão e vêm, mas um filho é para sempre. Se precisares de mim, estou aqui.
O apoio dela deu-me forças para tomar a decisão mais difícil da minha vida: escolhi ficar com o meu filho.
Quando contei ao Rui, ele fez as malas em silêncio. Não houve gritos nem lágrimas — só um vazio gelado entre nós.
— Espero que sejas feliz — disse ele antes de sair pela porta.
Fiquei ali parada, com as mãos na barriga e uma sensação de perda tão grande que quase me sufocava. Durante dias chorei sem parar. A casa parecia enorme e vazia sem ele. Os vizinhos começaram a perguntar por ele e eu inventava desculpas: “Está em viagem de trabalho”, “Teve de ir cuidar da mãe”… Até que deixaram de perguntar.
A gravidez avançou devagarinho. Cada consulta era um misto de alegria e tristeza: alegria por ver o meu bebé crescer saudável; tristeza por saber que ele nunca conheceria o pai. A Inês acompanhou-me a todas as consultas e foi ela quem me segurou a mão quando entrei em trabalho de parto.
O Tomás nasceu numa manhã fria de fevereiro. Quando o vi pela primeira vez, soube que tinha feito a escolha certa. Ele agarrou o meu dedo com aquela mãozinha minúscula e senti um amor tão grande que quase me esqueci de todas as dores.
Os primeiros meses foram duros. As noites sem dormir, as fraldas, as cólicas… Houve dias em que pensei que não ia aguentar. Mas cada sorriso do Tomás era um bálsamo para as minhas feridas.
O Rui nunca mais apareceu. Mandou uma mensagem no dia em que soube do nascimento:
— Espero que esteja tudo bem convosco.
Nada mais.
A família dele cortou relações comigo. A sogra deixou de me ligar e os cunhados fingiam não me ver na rua. Senti na pele o peso do julgamento: “Coitada da Sofia”, “Ela devia ter pensado melhor”, “Ninguém cria um filho sozinha”…
Voltei ao trabalho quando o Tomás tinha seis meses. A minha chefe foi compreensiva e deixou-me sair mais cedo para ir buscá-lo à creche. Mas os olhares dos colegas mudaram: já não era só a Sofia eficiente; era a Sofia-mãe-solteira.
Houve dias em que me senti invisível. Outros em que me senti invencível.
O tempo passou e aprendi a viver com as saudades do que podia ter sido. Vi o Tomás dar os primeiros passos, dizer as primeiras palavras — “mamã” foi a primeira — e percebi que nunca estaria verdadeiramente sozinha enquanto tivesse aquele pequeno ao meu lado.
Mas as noites continuavam difíceis. Às vezes acordava sobressaltada com pesadelos: via o Rui à porta de casa, arrependido; via-nos juntos outra vez; via-me sozinha para sempre.
Um dia, ao buscar o Tomás à creche, encontrei a mãe do Rui à porta. Olhou para mim com olhos vermelhos e voz trémula:
— Posso vê-lo?
Hesitei por um segundo, mas acenei que sim. Ela ajoelhou-se ao lado do Tomás e chorou baixinho enquanto lhe acariciava o cabelo loiro.
— Desculpa… — sussurrou ela para mim — Desculpa por tudo.
Naquele momento percebi que todos perdemos alguma coisa naquela escolha: eu perdi um marido; ela perdeu um filho presente; o Tomás perdeu um pai antes mesmo de nascer.
Hoje olho para trás e pergunto-me se poderia ter feito algo diferente. Talvez pudesse ter lutado mais pelo nosso casamento; talvez pudesse ter cedido ao medo; talvez… Mas quando vejo o sorriso do Tomás todas as manhãs sei que fiz aquilo em que acreditava.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres terão passado pelo mesmo? Quantas terão sido obrigadas a escolher entre o amor e um filho? E vocês? O que fariam se tivessem de escolher entre quem amam e quem ainda nem conhecem?