O Silêncio da Minha Filha e o Segredo Escondido nas Unhas

— Inês, por favor, atende o telefone! — sussurrei para mim mesma, olhando para o ecrã do telemóvel pela décima vez naquela manhã. O silêncio do outro lado era ensurdecedor. Desde que a minha filha se casou com o Rui e foi viver para aquela aldeia perdida no distrito de Viseu, nunca tinha passado mais de dois dias sem me ligar. Agora já ia em sete. Sete dias de silêncio, de noites mal dormidas, de pensamentos a martelar na cabeça.

Na manhã do oitavo dia, não aguentei mais. Peguei nas chaves do carro, deixei um bilhete ao meu marido — “Vou ver a Inês. Não consigo esperar mais.” — e parti. A viagem parecia interminável. As curvas da serra, as casas dispersas, os campos de milho a perder de vista. O rádio tocava uma música qualquer, mas eu só ouvia o meu coração aos pulos.

Quando cheguei à casa deles, reparei logo que algo estava errado. O portão estava entreaberto, o jardim por cuidar, ervas daninhas a crescerem onde antes havia flores plantadas com tanto carinho pela Inês. Toquei à campainha. Nada. Bati à porta com força.

— Inês! Sou eu, mãe! — gritei, sentindo a voz tremer.

Ouvi passos arrastados do outro lado. A porta abriu-se devagarinho e vi a minha filha. O choque quase me fez cair para trás. Estava pálida, os olhos inchados e vermelhos, cabelo preso à pressa. Mas foram as mãos dela que me gelaram o sangue: as unhas estavam partidas, algumas com sangue seco, outras tão roídas que quase não restava unha.

— Mãe… — murmurou ela, tentando sorrir.

— O que se passa contigo? Porque não atendeste? — perguntei, já com lágrimas nos olhos.

Ela hesitou, olhou para trás como se temesse que alguém a ouvisse.

— Não é nada… Tenho estado cansada, só isso.

— Não me mintas, Inês! Olha para ti! — agarrei-lhe as mãos com delicadeza, mas ela estremeceu de dor.

Nesse momento ouvi a voz grossa do Rui vindo da cozinha:

— Quem é?

Inês encolheu-se ainda mais. Senti uma raiva a crescer dentro de mim.

— Sou eu, a mãe da Inês! Vim ver como estavam! — respondi, tentando manter a calma.

O Rui apareceu à porta da cozinha. Tinha um olhar frio e avaliador. Cumprimentou-me com um aceno seco e voltou para dentro sem dizer mais nada.

— Inês, diz-me a verdade — insisti em voz baixa. — O Rui fez-te alguma coisa?

Ela abanou a cabeça rapidamente, mas os olhos dela gritavam por socorro. Sentei-me com ela na sala. O ambiente era pesado, como se o ar estivesse carregado de eletricidade.

— Ele não gosta que eu fale ao telefone… Diz que gasto dinheiro à toa… — confessou finalmente, quase num sussurro.

— E as tuas mãos? — perguntei.

Ela olhou para elas como se as visse pela primeira vez.

— Tenho tido ataques de ansiedade… Não consigo parar de roer as unhas… Às vezes… às vezes magoo-me sem querer…

O meu coração partiu-se ali mesmo. Abracei-a com força.

— Filha, tens de sair daqui. Isto não é vida para ti!

Ela afastou-se ligeiramente e olhou-me nos olhos.

— Não posso… Ele diz que se eu sair daqui nunca mais vejo o Tomás…

O Tomás. O meu neto de três anos. Olhei em volta e só então reparei no silêncio estranho da casa.

— Onde está o Tomás?

— Está no quarto… O Rui não gosta que ele faça barulho quando está em casa…

Senti uma fúria misturada com impotência. Como é que deixámos isto acontecer? Como é que ninguém viu os sinais? Lembrei-me das vezes em que Inês dizia estar cansada demais para vir ao Porto visitar-nos, das desculpas esfarrapadas para não atender chamadas em vídeo.

Nesse momento ouvi um choro baixinho vindo do corredor. Levantei-me e fui até ao quarto do Tomás. Ele estava sentado na cama, abraçado ao seu urso de peluche, olhos grandes e assustados.

— Olá, querido… — disse eu suavemente, ajoelhando-me ao lado dele.

Ele sorriu timidamente e estendeu os bracinhos para mim. Peguei nele ao colo e voltei para a sala.

O Rui apareceu à porta outra vez:

— O que está a fazer com o miúdo?

— Estou só a dar-lhe um abraço — respondi friamente.

Ele olhou para mim como se quisesse dizer algo, mas limitou-se a resmungar e voltou para a cozinha.

Sentei-me com Inês e Tomás no sofá. Ela chorava baixinho enquanto lhe acariciava o cabelo.

— Mãe… tenho medo…

— Eu sei, filha… Mas não estás sozinha. Vamos sair daqui juntos. Eu prometo.

Passámos o resto da tarde em silêncio tenso. Cada vez que ouvíamos passos do Rui ficávamos imóveis, como presas à espera do predador. Quando anoiteceu, ele saiu para ir ao café da aldeia. Aproveitei o momento:

— Inês, pega nas tuas coisas e nas do Tomás. Vamos agora!

Ela hesitou.

— E se ele voltar? E se nos apanhar?

— Não vai voltar tão cedo. E mesmo que volte, eu estou aqui contigo.

Ajudámo-la a arrumar uma mala pequena com algumas roupas e os brinquedos favoritos do Tomás. Saímos pela porta dos fundos e corremos até ao carro. O coração batia-me tão forte que parecia que ia explodir.

A viagem de regresso foi feita em silêncio absoluto. Só quando chegámos ao Porto é que Inês desabou em lágrimas no meu colo.

Nos dias seguintes ajudámo-la a procurar apoio psicológico e legal. O Rui tentou ligar-lhe várias vezes, ameaçou-a por mensagens, mas desta vez ela não estava sozinha. Com o tempo, Inês começou a recuperar: deixou de roer as unhas, voltou a sorrir devagarinho e o Tomás voltou a brincar sem medo.

Hoje olho para trás e penso em quantas mães há por aí que sentem este mesmo medo silencioso pelos filhos adultos. Quantas filhas escondem as suas dores atrás de desculpas banais? Quantos sinais ignoramos porque não queremos acreditar no pior?

Será que alguma vez conseguimos realmente proteger quem amamos? Ou será que só acordamos quando já é quase tarde demais?