Entre Dois Mundos: O Peso de Uma Família Refeita
— Não é justo, Rui! — gritei, sentindo a voz tremer, enquanto ele desviava o olhar para o chão da cozinha. — Sempre que a Mariana precisa de alguma coisa, tu corres. E eu? E o nosso filho? Ficas sempre dividido.
O silêncio dele doía mais do que qualquer resposta. Oiço o tilintar da colher na chávena de café, como se fosse um relógio a marcar cada segundo da minha frustração. Nunca pensei que amar alguém pudesse ser tão solitário.
Quando conheci o Rui, ele era tudo o que eu procurava: maduro, carinhoso, com aquele sorriso tímido de quem já sofreu mas ainda acredita. Sabia que tinha uma filha, claro. Mariana tinha 22 anos na altura, estudava Direito em Coimbra e vinha a casa nos fins de semana. Achei que seria fácil: ela já era adulta, eu não teria de ser mãe dela. Enganei-me.
O casamento foi simples, só família próxima. Lembro-me do olhar frio da Mariana durante a cerimónia. Não me cumprimentou, não me olhou nos olhos. No início tentei aproximar-me: convidei-a para almoçar, perguntei-lhe sobre a faculdade. As respostas eram sempre monossilábicas, como se cada palavra fosse um esforço.
— Não tens de gostar de mim — disse-lhe um dia, depois de mais um jantar tenso. — Mas pelo menos respeita o teu pai.
Ela levantou-se da mesa sem dizer nada. Rui ficou calado, como sempre. Foi aí que percebi que estava sozinha naquela batalha.
Quando engravidei do nosso filho, achei que tudo mudaria. Rui ficou radiante, mas Mariana afastou-se ainda mais. No dia em que o nosso Tomás nasceu, ela nem apareceu no hospital. Rui tentou justificar:
— Ela está a passar uma fase difícil…
Mas eu sabia que era mais do que isso. Era ciúme, era medo de perder o pai para uma nova família. E Rui… Rui nunca soube impor limites.
Os meses passaram e Mariana começou a aparecer cada vez mais lá em casa. Ora precisava de dinheiro para a renda do quarto em Lisboa, ora queria ajuda para comprar um carro em segunda mão. Rui nunca dizia não. Eu via as nossas poupanças a desaparecerem e sentia-me impotente.
— Rui, temos contas para pagar! — protestava eu.
— É minha filha — respondia ele, como se isso justificasse tudo.
As discussões tornaram-se rotina. O Tomás chorava no berço e eu chorava na casa de banho, para ninguém ver. Sentia-me uma intrusa na minha própria casa.
Um domingo à tarde, Mariana apareceu sem avisar. Trazia uma mala enorme e os olhos vermelhos.
— O meu senhorio pôs-me na rua — disse ela ao pai, ignorando-me por completo.
Rui abraçou-a e disse-lhe para ficar connosco o tempo que precisasse. Eu queria protestar, mas calei-me. Não queria ser a madrasta má dos contos de fadas.
Durante semanas, Mariana ocupou a sala com os seus livros e roupas espalhadas por todo o lado. Não ajudava em nada, não falava comigo nem com o Tomás. Rui fazia tudo para agradá-la: cozinhava os pratos preferidos dela, dava-lhe boleia para entrevistas de emprego.
Uma noite, depois de adormecer o Tomás, sentei-me ao lado do Rui no sofá.
— Isto não pode continuar assim — disse-lhe baixinho. — Sinto-me invisível nesta casa.
Ele olhou-me com cansaço.
— Não percebes… Ela precisa de mim agora. Já passou por tanto desde o divórcio…
— E eu? Eu não conto?
Ele não respondeu. Levantou-se e foi ver se Mariana precisava de alguma coisa.
Comecei a sair mais vezes sozinha com o Tomás: passeios no parque, tardes na biblioteca municipal. Precisava de ar, de espaço para respirar sem sentir aquele peso no peito. As minhas amigas diziam-me para ser paciente, mas nenhuma delas sabia o que era viver à sombra de outra mulher — mesmo que essa mulher fosse filha do meu marido.
Certa noite ouvi Mariana ao telefone no corredor:
— O meu pai faz tudo por mim… A Ana? Nem sei porque ele casou com ela…
Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. No dia seguinte confrontei Rui:
— Sabes o que ela anda a dizer sobre mim?
Ele encolheu os ombros.
— Ela está magoada… Precisas de compreender.
— Sempre eu a compreender! E quem me compreende a mim?
A partir desse dia deixei de tentar agradar à Mariana. Cumprimentava-a por educação e mais nada. O ambiente tornou-se insuportável.
Um sábado à noite, depois de mais uma discussão sobre dinheiro (Mariana queria um novo computador portátil), Rui explodiu:
— Se não consegues aceitar a minha filha, talvez devêssemos repensar este casamento!
Fiquei gelada. Nunca pensei ouvi-lo dizer aquilo.
— Então é isso? Depois de tudo o que passámos juntos… vais escolher a Mariana?
Ele não respondeu. Saiu porta fora e só voltou de madrugada.
Nessa noite dormi no quarto do Tomás. Olhei para ele a dormir e perguntei-me se algum dia teria uma família normal.
Os dias seguintes foram um tormento: Rui evitava-me, Mariana fazia questão de me ignorar ainda mais. Senti-me derrotada.
Procurei refúgio na minha mãe. Ela ouviu-me em silêncio e depois disse:
— Filha, às vezes amar alguém não chega… Tens de pensar em ti e no Tomás.
Voltei para casa decidida a mudar alguma coisa. Sentei-me com Rui à mesa da cozinha e disse-lhe tudo o que sentia: o medo de perder o casamento, a solidão, a sensação de ser sempre a segunda escolha.
Ele chorou pela primeira vez desde que nos conhecemos.
— Não sei como fazer diferente… Tenho medo de perder a Mariana outra vez.
— E se me perderes a mim?
Ficámos ali sentados muito tempo, sem saber o que fazer ao futuro.
Mariana acabou por arranjar emprego noutra cidade e saiu de casa dois meses depois. O ambiente melhorou, mas as feridas ficaram.
Hoje olho para trás e pergunto-me: valeu a pena lutar tanto por alguém que nunca me escolheu verdadeiramente? Será possível construir uma família quando há fantasmas do passado sempre à espreita?
E vocês? Já sentiram que lutam sozinhos por algo que devia ser partilhado?