O Grito Silencioso: Um Parto em Casa Entre o Amor e a Tragédia
— Nicole, tens a certeza disto? — perguntou a minha mãe, com as mãos trémulas agarradas ao avental, os olhos marejados de preocupação.
Olhei para ela, tentando esconder o medo que me roía por dentro. — Mãe, já falámos sobre isto. O parto vai ser aqui em casa. Não quero hospitais, não quero estranhos. Quero estar com o Miguel, quero que ele veja o nosso filho nascer. — A minha voz soava mais firme do que eu sentia.
Miguel estava sentado no sofá, os olhos perdidos na televisão desligada. Desde o acidente, há dois anos, que a sua vida era feita de silêncios e pequenas dependências. Eu fazia tudo: tratava da casa, das contas, do trabalho remoto como contabilista. E agora, grávida de oito meses e meio, sentia-me mais forte do que nunca — ou pelo menos era isso que repetia para mim mesma todas as noites.
A minha mãe suspirou, derrotada. — Se precisares de mim…
— Eu ligo, prometo. — Sorri-lhe, tentando tranquilizá-la.
Quando ela saiu, fechei a porta devagar e encostei a testa à madeira fria. O apartamento parecia mais pequeno com o silêncio pesado que ficou. Miguel olhou para mim, os olhos castanhos cheios de uma tristeza antiga.
— Não tens medo? — perguntou ele, baixinho.
— Tenho — admiti, sentando-me ao lado dele. — Mas tenho mais medo de te deixar sozinho num hospital cheio de gente. Não quero que passes por isso outra vez.
Ele pegou na minha mão com dificuldade. — Não sou um fardo, Nicole.
— Eu sei. — Mas será que sabia mesmo? Ou será que o meu orgulho era só uma máscara para o medo de perder o controlo?
Os dias seguintes passaram-se entre listas de compras, vídeos sobre partos naturais e telefonemas para a parteira, Dona Lurdes, uma mulher robusta e experiente da aldeia vizinha. O plano era simples: quando as contrações começassem, eu ligava-lhe e ela vinha imediatamente.
Na noite fatídica, acordei com uma dor surda no baixo-ventre. Olhei para o relógio: 3h17 da manhã. Miguel dormia ao meu lado, respirando pesadamente. Senti um líquido quente escorrer pelas pernas e soube que era chegada a hora.
— Miguel… — sussurrei, abanando-o levemente. — Está a começar.
Ele acordou sobressaltado, os olhos arregalados de pânico. — Ligo à Dona Lurdes?
— Sim… por favor.
Enquanto ele tentava discar o número com dedos trémulos e desajeitados, sentei-me no tapete da sala, respirando fundo como tinha aprendido nos vídeos. As dores vinham em ondas cada vez mais fortes. O telefone tocou várias vezes sem resposta.
— Não atende… — murmurou Miguel, a voz embargada.
O pânico começou a instalar-se no meu peito. Tentei manter a calma. — Tenta outra vez…
Nada. Dona Lurdes não atendia.
As contrações intensificaram-se rapidamente. Senti-me perdida entre a dor e o medo. Miguel ajoelhou-se ao meu lado, tentando segurar-me.
— Nicole… não podemos esperar mais! Vamos ao hospital!
— Não! — gritei, lágrimas escorrendo pelo rosto. — Não posso deixar-te aqui! Não posso!
Ele olhou-me desesperado. — Eu fico bem! Por favor…
Mas eu não conseguia ceder. Era como se todo o meu ser gritasse para ficar ali, para não abandonar o nosso lar nem por um segundo.
O tempo perdeu significado. As dores eram lancinantes; sentia-me a afundar num mar revolto sem margem à vista. Miguel tentava ajudar-me como podia: trazia toalhas limpas, água morna, mas os seus movimentos eram lentos e descoordenados.
— Aguenta só mais um pouco… — repetia ele, como se isso fosse possível.
Senti uma vontade incontrolável de fazer força. Gritei com todas as minhas forças; nunca imaginei que pudesse haver tanta dor no mundo. O quarto encheu-se do cheiro metálico do sangue misturado com suor e lágrimas.
— Está a sair! — gritou Miguel, em pânico.
Tentei empurrar com tudo o que tinha dentro de mim. Senti algo escorregar entre as minhas pernas e depois… silêncio. Um silêncio ensurdecedor.
Miguel pegou no bebé com mãos trémulas e olhou para mim, os olhos cheios de terror.
— Nicole… ele não chora…
O mundo parou naquele instante. Arrastei-me até ao meu filho; vi-o tão pequeno, tão imóvel… Toquei-lhe no peito frio e soube imediatamente que algo estava terrivelmente errado.
Miguel chorava convulsivamente ao meu lado. Peguei no telefone e disquei o 112 com dedos ensanguentados e trémulos.
— Por favor… ajudem-nos… o meu bebé não respira…
A ambulância chegou demasiado tarde. Levaram-me para o hospital em estado de choque; Miguel ficou em casa, sozinho, incapaz de se mover ou falar durante horas.
No hospital disseram-me palavras que nunca esquecerei: “O bebé nasceu sem vida.” Não houve explicações suficientes para acalmar a culpa que me consumia por dentro.
A minha mãe chegou pouco depois; abraçou-me sem dizer nada enquanto eu soluçava no seu ombro.
Os dias seguintes foram um nevoeiro denso de dor e silêncio. Miguel fechou-se ainda mais no seu mundo; eu vagueava pela casa vazia como um fantasma à procura de sentido.
As pessoas diziam: “Fizeste o melhor que pudeste.” Mas será? Será que fiz mesmo? Ou fui apenas teimosa demais para pedir ajuda quando mais precisava?
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos o orgulho falar mais alto do que o amor? Quantas tragédias poderiam ser evitadas se tivéssemos coragem de pedir ajuda?
E vocês? Já se sentiram presos entre aquilo que querem provar ao mundo e aquilo que realmente precisam? O que fariam se estivessem no meu lugar?