Quando Todos Foram Embora: A História de Vera e o Seu Filho Miguel

— Vera, não podes continuar assim. Já não és a mesma — disse a minha irmã, Ana, com aquela voz fria que só usava quando queria magoar.

Olhei para ela, sentada à mesa da cozinha, com as mãos cruzadas e os olhos fixos na chávena de café. O cheiro do café misturava-se com o odor ácido dos medicamentos do Miguel, que pairava pela casa desde que ele adoeceu. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim.

— Não sou a mesma porque o Miguel está doente! — respondi, tentando conter as lágrimas. — O que queres que faça? Que finja que está tudo bem?

Ana suspirou, levantou-se e pegou no casaco. — Não posso ajudar-te se não quiseres ser ajudada. — E saiu, deixando-me sozinha com o silêncio pesado da casa.

Miguel estava no quarto, deitado na cama, pálido como a parede atrás dele. Tinha apenas dez anos e já conhecia a dor melhor do que muitos adultos. A doença — leucemia, disseram os médicos — chegou sem aviso, como uma tempestade de verão. Num dia corria pelo quintal atrás do cão, no outro estava ligado a máquinas e rodeado de tubos.

No início, toda a família apareceu: tios, primos, vizinhos. Trouxeram flores, bolos, palavras de conforto. Mas à medida que os dias se transformaram em semanas e as semanas em meses, foram desaparecendo. Primeiro deixaram de ligar. Depois deixaram de perguntar. Por fim, deixaram de aparecer.

O meu marido, António, foi o último a ir embora. Uma noite chegou tarde do trabalho, sentou-se ao meu lado e disse:

— Vera, não aguento mais. Isto está a destruir-nos.

— O nosso filho está a morrer! — gritei-lhe.

Ele baixou os olhos. — Eu sei… mas não consigo viver assim. Preciso de respirar.

No dia seguinte, fez as malas e saiu. Nem sequer olhou para trás.

Fiquei eu e o Miguel. E o medo.

As noites eram as piores. Ouvia-o gemer baixinho no quarto ao lado e sentia-me impotente. Às vezes sentava-me no chão da casa de banho e chorava até não ter mais lágrimas. Perguntava-me onde estavam todos aqueles que diziam amar-nos. Onde estava Deus? Onde estava a justiça?

O dinheiro começou a faltar. Deixei o trabalho para cuidar do Miguel e as contas acumulavam-se na gaveta da cozinha. Pedi ajuda à Segurança Social, mas disseram-me que havia muitos casos como o nosso e poucos recursos. Fui à Junta de Freguesia pedir um cabaz alimentar. A funcionária olhou para mim como se eu fosse invisível.

— Tem filhos? — perguntou.

— Tenho um filho doente — respondi.

Ela encolheu os ombros e passou-me um saco com arroz e massa.

Miguel perdeu o cabelo durante a quimioterapia. Um dia olhou-se ao espelho e perguntou:

— Mãe, vou morrer?

Senti um nó na garganta tão apertado que mal conseguia respirar.

— Não vais, meu amor. A mãe está aqui contigo.

Mas por dentro duvidava das minhas próprias palavras.

Os dias eram todos iguais: hospital, casa, hospital outra vez. Aprendi a distinguir os sons das máquinas, a reconhecer os olhares cansados dos médicos. Havia outras mães como eu nos corredores do hospital: Maria do Carmo, cujo filho já não falava; Joana, que dormia no carro porque não tinha dinheiro para o autocarro de volta para casa.

Tornámo-nos uma família improvisada, unidas pela dor e pela esperança frágil.

Certa noite, Miguel teve uma crise forte. Corri com ele para as urgências. No caminho, ele agarrou-me a mão com força.

— Mãe… se eu morrer… vais ficar sozinha?

As lágrimas correram-me pelo rosto enquanto conduzia.

— Nunca vou ficar sozinha porque tu vais sempre estar comigo — disse-lhe.

No hospital disseram-me que era grave. Sentei-me ao lado da cama dele e rezei como nunca tinha rezado antes.

Na manhã seguinte, Ana apareceu no hospital. Trazia flores e um ar arrependido.

— Desculpa — murmurou. — Não soube lidar com isto…

Olhei para ela sem saber o que dizer. O perdão é fácil de pedir quando não se sente a dor na pele.

Miguel sobreviveu à crise, mas ficou mais fraco. Os médicos disseram que só um milagre poderia salvá-lo agora.

Nessa noite sentei-me ao lado dele e contei-lhe histórias da minha infância: como eu e Ana brincávamos no campo dos avós, como apanhávamos amoras e fugíamos das galinhas da vizinha Rosa.

Miguel sorriu pela primeira vez em semanas.

— Gostava de ir ao campo contigo um dia — disse ele baixinho.

Prometi-lhe que sim, mesmo sabendo que talvez nunca acontecesse.

O tempo passou devagar. Os amigos desapareceram por completo; até os vizinhos começaram a evitar-me no supermercado. Era como se a doença fosse contagiosa ou como se eu tivesse feito algo errado por ter um filho doente.

Uma tarde ouvi duas vizinhas à porta do prédio:

— Dizem que ela anda sempre triste… Deve ser castigo por alguma coisa.

Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim outra vez. Porque é que as pessoas julgam tão facilmente?

No último Natal passámos sozinhos em casa. Fiz um bolo simples e cantámos músicas antigas. Miguel adormeceu cedo, cansado demais para abrir os presentes.

Na manhã seguinte acordei com um silêncio estranho na casa. Corri ao quarto dele e encontrei-o imóvel, respirando devagarinho.

Chamei uma ambulância e rezei para que não fosse o fim.

Miguel sobreviveu mais alguns meses. Cada dia era uma vitória pequena: um sorriso, uma palavra, um raio de sol pela janela.

Quando finalmente partiu, senti um vazio tão grande que pensei que nunca mais conseguiria respirar normalmente.

O funeral foi pequeno; poucos apareceram. Ana chorou ao meu lado e pediu-me perdão outra vez. António não apareceu sequer.

Hoje vivo sozinha numa casa demasiado grande para mim. Guardo as memórias do Miguel como quem guarda um tesouro frágil: o cheiro do cabelo dele antes da doença, o som da sua gargalhada no quintal, o brilho dos seus olhos quando lhe prometi que tudo ia ficar bem.

Às vezes pergunto-me: onde estavam todos quando mais precisei? Porque é que a solidão pesa tanto quando devia ser partilhada?

E vocês? O que fariam se todos vos virassem as costas no momento mais difícil das vossas vidas?