Jantares Que Mudaram Tudo: Entre o Meu Filho, a Nora e as Velhas Manias

— Mãe, por favor, não voltes a falar disso à Mariana. — A voz do Ricardo tremia, mas os olhos dele fugiam dos meus.

Eu estava de costas para ele, a mexer o arroz de pato que fervia na panela. O cheiro enchia a cozinha, mas o ar estava pesado, quase irrespirável. Mariana estava na sala, a tentar entreter-se com o telemóvel, mas eu sabia que ouvia cada palavra.

— Falar do quê? — perguntei, fingindo inocência. Mas sabia perfeitamente ao que ele se referia. Era sempre o mesmo: as minhas críticas à maneira como ela fazia o arroz, como punha a mesa, como falava alto ao telefone com a mãe dela.

Ricardo suspirou. — Mãe, já não estamos em 1980. A Mariana é diferente, tem outras ideias. Não podes estar sempre a comparar tudo com o que fazias com o pai.

Senti uma pontada no peito. O pai dele… Se ele soubesse o quanto me custava não ter mais ninguém em casa desde que o António morreu. E agora vinha ele dizer-me que eu é que estava errada?

— Eu só quero o melhor para vocês — murmurei, baixando o lume. — Não percebo porque é que tudo tem de mudar.

Ricardo aproximou-se e pousou a mão no meu ombro. — Às vezes mudar é bom, mãe.

Ficámos ali em silêncio. O arroz borbulhava baixinho. Ouvi um riso abafado vindo da sala. Mariana devia estar a ver vídeos daqueles parvos no TikTok.

Naquela noite, durante o jantar, tentei não comentar nada. Mas quando vi Mariana servir-se primeiro do frango antes de passar ao Ricardo, não consegui evitar:

— Na minha altura, servia-se sempre primeiro o homem da casa.

Mariana olhou para mim, os olhos castanhos faiscando. — Pois, D. Teresa, mas agora somos todos iguais à mesa.

Ricardo ficou tenso. Eu senti-me humilhada. O jantar terminou num silêncio desconfortável, só interrompido pelo tilintar dos talheres.

Depois disso, as visitas deles tornaram-se mais espaçadas. Eu sentia falta do barulho deles em casa, mas também sentia alívio por não ter de me controlar tanto. Comecei a falar sozinha pela casa:

— Teresa, estás a ficar velha e amarga. Não era isto que querias para ti.

Mas depois lembrava-me dos domingos em família, das gargalhadas do António, do Ricardo pequenino a correr pela sala… E chorava baixinho na cozinha.

Um dia, recebi uma mensagem do Ricardo: “Mãe, podemos ir jantar aí hoje? Temos uma coisa para te contar.”

O coração disparou-me no peito. Passei a tarde toda a limpar e a cozinhar como se fosse Natal. Fiz bacalhau à Brás, o prato preferido dele desde pequeno.

Quando chegaram, percebi logo que algo estava diferente. Mariana trazia um brilho nos olhos e Ricardo parecia nervoso.

Sentámo-nos à mesa e mal comecei a servir-lhes o bacalhau, Mariana pousou o garfo e disse:

— D. Teresa… Estou grávida.

Fiquei sem palavras. Olhei para Ricardo e vi nele um misto de alegria e medo.

— Vamos ser avós — disse ele baixinho.

Senti as lágrimas virem-me aos olhos. Levantei-me e abracei-os aos dois. Pela primeira vez em muito tempo, senti-me parte de alguma coisa maior do que eu própria.

Os meses seguintes foram um turbilhão de emoções. Mariana vinha muitas vezes cá a casa pedir conselhos sobre gravidez — mesmo depois de todas as nossas discussões. Eu ensinava-lhe receitas antigas da minha mãe e ela mostrava-me como usar o WhatsApp para ver as ecografias do bebé.

Mas nem tudo era fácil. Um dia, Mariana apareceu cá em casa a chorar:

— D. Teresa… A minha mãe quer que eu vá ter o bebé em Lisboa com ela. Diz que aqui no Porto não tenho apoio suficiente.

Fiquei furiosa:

— Apoio? Então eu não sou apoio? O meu neto vai nascer aqui nesta casa!

Mariana soluçava:

— Eu sei… Mas ela faz-me sentir culpada por não estar com ela.

Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão:

— Mariana… Eu também perdi a minha mãe cedo demais. Sei o que custa querer agradar às duas famílias. Mas acredita: aqui tens uma casa e uma família à tua espera.

Ela sorriu entre lágrimas e abraçou-me com força.

No dia em que o pequeno Tomás nasceu, fui ao hospital com um ramo de flores e um bolo de laranja ainda quente. Quando entrei no quarto e vi Mariana com o bebé nos braços e Ricardo ao lado dela, senti-me finalmente em paz.

Mas os desafios continuaram. Mariana quis voltar ao trabalho cedo demais para o meu gosto; Ricardo achava que eu me intrometia demasiado na educação do Tomás; eu sentia-me posta de lado quando eles faziam planos sem me incluir.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre quem devia buscar o Tomás à creche, sentei-me sozinha na sala e olhei para as fotografias antigas na estante: eu e António no nosso casamento; Ricardo ainda bebé; todos nós à mesa num Natal distante.

Pensei em tudo o que tinha mudado — nas tradições que já ninguém seguia, nas palavras ditas e nas que ficaram por dizer.

No domingo seguinte, convidei-os para jantar outra vez. Fiz questão de pedir à Mariana para escolher o menu — ela pediu lasanha vegetariana.

Enquanto cozinhávamos juntas na cozinha apertada, Mariana virou-se para mim:

— Sabe, D. Teresa… Às vezes sinto que nunca vou ser suficiente para si.

Fiquei parada um instante. Depois abracei-a:

— Eu é que tenho medo de não ser suficiente para vocês…

Rimo-nos as duas entre lágrimas e molho de tomate.

Naquela noite, à mesa com Ricardo e Tomás a brincar no chão, percebi finalmente: família não é sobre quem serve primeiro ou quem faz melhor arroz; é sobre quem fica quando tudo o resto falha.

Agora pergunto-me: quantas vezes deixamos o orgulho falar mais alto do que o amor? E será que algum dia aprendemos mesmo a ouvir uns aos outros?