A Semana Que Mudou Tudo: Entre o Amor de Mãe e a Lealdade à Família
— Não me olhes assim, Leonor. Eu só quero o melhor para o Tomás! — A voz da minha mãe ecoava pela cozinha, carregada de uma firmeza que me era tão familiar quanto dolorosa.
Eu sentia o coração a bater descompassado, as mãos frias agarradas à bancada. O cheiro do café queimado misturava-se com o da ansiedade que pairava no ar. O Tomás, com apenas seis anos, brincava na sala, alheio à tempestade que se formava entre mim e a minha mãe.
— O melhor para o Tomás? — repeti, quase num sussurro, tentando não gritar. — Achas mesmo que é melhor para ele ouvir-te falar mal do pai dele? Achas que é isso que ele precisa?
Ela virou-se de costas, mexendo nervosamente na chávena. — O teu pai fazia o mesmo comigo e tu cresceste bem. Não estou a dizer nada que não seja verdade. O Miguel nunca foi homem para ti, muito menos para o Tomás.
Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Desde que me separei do Miguel, há dois anos, a minha mãe tornou-se ainda mais presente — demasiado presente. No início, agradeci-lhe cada gesto, cada noite em que ficou cá em casa para me ajudar com o Tomás enquanto eu chorava baixinho no quarto. Mas agora, parecia que cada palavra dela era uma faca afiada, pronta a cortar tudo o que eu tentava reconstruir.
Naquela semana, tudo se intensificou. Começou com pequenas coisas: a minha mãe a criticar os desenhos do Tomás — “Devias desenhar casas, não monstros” — ou a refilar porque ele não comia sopa suficiente. Mas na quarta-feira, quando cheguei mais cedo do trabalho e ouvi-a dizer ao Tomás que o pai dele era um “fraco” e que nunca mais ia voltar, algo dentro de mim partiu-se.
— Mãe, não podes falar assim! — gritei, sem conseguir controlar as lágrimas. O Tomás olhou para mim assustado, os olhos grandes e húmidos.
— Estou só a prepará-lo para a vida real! — respondeu ela, defensiva.
Nessa noite, deitei-me ao lado do Tomás até ele adormecer. Senti-o encolher-se contra mim, como se procurasse abrigo de uma tempestade invisível. Fiquei ali horas, a olhar para o teto, a pensar em tudo o que tinha perdido e em tudo o que ainda podia perder.
No dia seguinte, tentei falar calmamente com a minha mãe.
— Mãe, eu agradeço tudo o que tens feito por nós. Mas preciso que respeites o Miguel como pai do Tomás. Ele já está a sofrer com a separação. Não quero que sofra ainda mais.
Ela abanou a cabeça, teimosa como sempre. — Tu é que não vês as coisas como elas são. Eu só quero proteger-vos.
O problema é que essa proteção sufocava-me. Sufocava-nos aos dois.
Na sexta-feira à noite, depois de mais uma discussão, sentei-me sozinha na varanda. O frio da noite de Lisboa entrava-me pelos ossos, mas eu não conseguia mexer-me. Lembrei-me de quando era pequena e me escondia no quarto sempre que os meus pais discutiam. Lembrei-me de prometer a mim mesma que nunca deixaria o meu filho sentir-se assim.
No sábado de manhã, tomei uma decisão difícil. Liguei ao Miguel.
— Preciso de falar contigo — disse-lhe, a voz trémula.
Encontrámo-nos num café perto do Jardim da Estrela. Ele parecia cansado, mas preocupado.
— O que se passa?
Contei-lhe tudo: as palavras da minha mãe, as discussões constantes, o medo de estar a repetir os erros dos meus pais.
— Achas que devíamos afastar-nos dela? — perguntei-lhe, sentindo-me uma traidora só por pensar nisso.
Ele ficou em silêncio durante uns segundos longos demais.
— Leonor… Eu sei que ela te ajudou muito. Mas o Tomás precisa de paz. E tu também.
Voltei para casa com o coração apertado. A minha mãe estava na sala, a ver televisão como se nada fosse.
— Mãe… — comecei, sentando-me ao lado dela. — Preciso que vás para tua casa durante uns tempos.
Ela olhou para mim como se eu lhe tivesse dado uma bofetada.
— Vais expulsar-me? Depois de tudo o que fiz por ti?
As lágrimas caíram-me pelo rosto sem aviso.
— Não é isso… Só preciso de espaço. O Tomás precisa de espaço. Eu amo-te, mas isto não está a funcionar.
Ela levantou-se bruscamente e foi arrumar as coisas em silêncio. O Tomás apareceu à porta do corredor, olhos arregalados.
— A avó vai embora?
Abracei-o com força.
— Vai só descansar um bocadinho em casa dela. Mas nós vamos vê-la muitas vezes, prometo.
Naquela noite dormi mal. Senti culpa, alívio e medo misturados num nó impossível de desfazer. No domingo de manhã, recebi uma mensagem da minha mãe: “Quando precisares de mim, sabes onde estou.” Não respondi logo. Fiquei a olhar para o Tomás a brincar no tapete da sala, finalmente tranquilo.
Passei os dias seguintes num misto de saudade e paz. O silêncio da casa era estranho mas reconfortante. Aos poucos fui percebendo que ser mãe é também saber proteger os nossos filhos das pessoas que mais amamos — mesmo quando isso nos parte o coração.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito diferente? Teria sido possível evitar tanta dor? Ou será que às vezes é preciso perder para aprender a amar melhor?
E vocês? Já tiveram de escolher entre proteger um filho e manter um laço familiar? Como se volta a confiar depois disso?